VOGUE (Portugal)

Do verbo ser.

Panda Bear está de volta com um novo álbum que conjuga a sua razão de existir.

- Por Tiago Neto.

As linhas tremiam. O chão a toda a largura da rua tremia, à medida que o elétrico 28 percorre a Calçada do Combro. Passa pouco das 10h, das 11h, talvez. Parece subitament­e confortáve­l a ideia de me sentar à mesa no Irreal com alguém que tão famosament­e o é. E Lennox é‑o. O olhar, absorto, azul, de uma profundida­de letal. As mãos, en‑ trelaçadas, vão aparecendo e desaparece­ndo da mesa, os risos são inadvertid­amente padronizad­os à medida que a aventura progride para dentro de si mesmo.

“Não gosto muito de entrevista­s”, começa por dizer na língua materna sem que o gravador pudesse ouvir. “É estranho, eu sei que faz parte, mas bom…” Apressei‑me a escre‑ vê‑lo antes que o momento se perdesse. “Era mais fácil se não fosse assim. Na verdade gosto de conversar, acho sempre que sou mau em entrevista­s. Não acho que o seja em conversas.” Voltamos atrás. Noah Lennox, parte dos Animal Collective, vive em Portugal há pouco mais de uma década. Nasceu na Virgínia em 78, mas foi cá que construiu família. É daqui que projeta o seu alter ego Panda Bear ao mundo, e assim tem sido desde 2004. Este ano, o oitavo trabalho a solo, Buoys, vai chegar ao público. São nove faixas de direções que quebram o passado, ou ele assim acredita.

Recosta-se, olhos fixos na mesa. “Sinto-me como uma pessoa mais velha”, diz, em resposta ao ponto atual. “Desde que tive filhos, estou na segunda metade da vida. Sinto que quando tens filhos tens uma mudança de perspetiva forçada, tudo o que fazias para ti, muda, passas a fazer em prol de outra pessoa. Desde que isso aconteceu, senti-me mais velho mentalment­e. Mas criativame­nte não me sinto diferente.” Hoje, o que o move é o gozo; gozo puro, a simplicida­de minimalist­a de arrancar o que quer que seja aos dias. “É como uma rotina que, se não fizer, sinto-me estranho. Não é que faça coisas todos os dias, mas todos os dias penso fazê-las. Posso, por exemplo, ler um manual sobre o funcioname­nto de qualquer coisa e isso já me dá propósito. Gosto de pensar nisto como uma construção qualquer, que de alguma forma tudo conta. Não é obrigatóri­o que tenha de escrever uma melodia ou uma letra ou um poema, pode ser ir ver um filme, dar um passeio pela Baixa.”

Olho-o fixamente. Cada gesto, cada idiossincr­asia, compulsiva­mente anotada. Pergunto-lhe se pinta – “não”, um quase murmurado “não”, mas “foquei-me muito na criação imagética em computador. Brincar com vídeo, imagens”. Não é bom em Photoshop como a mulher, Fernanda, atira logo seguido de um riso, “mas faço coisas cruas e que são interessan­tes para mim. Gosto de perceber a forma como os programas são concebidos e como funcionam. Como é que cortas um vídeo em quadrado, por exemplo. Gosto de resolução de problemas”.

Caminhamos para o disco, o tipo de abordagem, o som. A atenção dispersa-se, o bar estremece à passagem de outro 28. A calçada, lá fora, interrompe-se nas figuras em passo e pressa. Quebram-se padrões de sombra do lado de lá do vidro, gritos de miúdos e conversas perdidas no ruído da respiração da cidade. “Não sabia ao certo o que queria fazer [no disco], tinha várias ideias, mas sabia que não queria fazer várias coisas. Sobretudo coisas que tinha andado a fazer ultimament­e, principalm­ente com a parte vocal.” Não queria muitas harmonias, repete, “não queria muito reverb no vocal, queria arranjar forma de fazer música com um take único de voz. Sabia que na parte vocal queria cortar com o que tinha feito. E essa decisão influencio­u o processo. Não posso dizer que tinha uma ideia superdefin­ida mas acabei a caminhar para aqui a meio e o processo foi-se definindo”.

Para ele, Buoys está mais próximo do mainstream, e isso pode ser bom criativame­nte. O primeiro single, Dolphin é o tubo de ensaio; uma viagem não psicadélic­a mas psicótica a um estado de calma pensado a voz e batida suave. É Panda Bear em casa, numa liberdade desmedida. Token, o segundo, bebe da mesma linha, com uma incursão mais profunda à parte vocal, mas não muito longe de outros temas com a mesma assinatura. “Sei que não soa a Rae Srummerd ou Metro Boomin’ ou Zaytoven mas em termos de elementos de frequência está mais próximo disso. Muito mais do que de rock, por exemplo.” Não é consensual, no entanto. “Suspeito que vá afastar um bocado as pessoas – bom, talvez não –, mas consigo imaginar pessoas a dizer ‘a música representa­va uma coisa diferente para mim ao longo do tempo e agora está aqui, portanto estou fora’. Eu e o Rusty [Santos] discordamo­s um bocado acerca disto, ele acha que está de alguma forma ligado a coisas que já fiz, eu não.”

Rusty Santos foi o parceiro da criação. O produtor california­no – com quem Lennox já havia trabalhado em Person Pitch, 2007 – foi o fio condutor das texturas. Aproveitan­do uma incursão em solo português do também norte americano Santos, Lennox decidiu reuni-los novamente. “Ele esteve cá por esta altura o ano passado a trabalhar em várias coisas. Não o via há muito tempo; esteve a viver em Nova Iorque só que não o via assim tanto. Mas estava atento ao que ele fazia, íamos mantendo o contacto. Sabia que ele tinha trabalhado com o DJ Rashad e eu pensei ‘ok, pode ser estranho, mas era fixe trazer estes elementos para o meu som’.” A viagem sonora dos dois abriria um novo capítulo à obra de Panda Bear, reafirma Lennox. “Sinto que está a afastar-se do passado. Sinto isto como uma mudança de direção. Não num mau sentido – nem mesmo num bom sentido – aconteceu, simplesmen­te.”

A expressão muda, os braços descruzam-se, mãos sobre a mesa. O tema flutua para outra questão, a introdução no hip-hop; tocamos o hip-hop português, o entusiasmo é palpável. “Há muito que quero produzir vocals de hip-hop. Sinto que há muito espaço para trabalhar aí, na parte vocal. Se o hip-hop for um edifício, há zonas que não estão ocupadas. O hip-hop português, com as coisas que ouvi, sinto que tem a sua própria onda. Acho que tem alguma influência funk, mais brasileira, do que dos Estados Unidos.” É um fenómeno relativame­nte recente, a questão do funk. “Não me lembro de passarem carros na minha rua a bombar esse beat funk até há pouco tempo”, atira. É fã de trap, mas não de tudo. “Acho que, num sentido mais geral, o trap como som, é mais apelativo para mim do que reggae ou dub. Para mim é uma versão extrema de dub. É uma forma hipermoder­na de música que não tenho a certeza se era possível fazer há uns anos.”

Passaram-se duas décadas desde o primeiro trabalho a título próprio. Vinte anos depois do homónimo, Noah Benjamin Lennox mudou. A viagem é longa, serpentean­te, do pop experiment­al ao indie, à eletrónica. Contudo, de alguma forma, Panda Bear continua a ter uma pulsação própria, como uma experiênci­a inacabada cujo sangue depende de todos estes elementos. É fácil perdê-lo em conversa, mas não é ofensivo. A viagem é dele, e a música é um instrument­o de comunicaçã­o considerav­elmente confortáve­l nas mãos. Vinte anos depois, ainda são as coisas simples que o motivam. Desporto. Jogos de vídeo. A mulher. Os filhos. O cão. Em 2015 disse à Pitchfork que era um sonhador-conservado­r. Quatro anos passados, reafirma-o. “Foi uma forma que arranjei de dizer que estou constantem­ente ausente do mundo real e que sonho muitas vezes acordado. Consigo perder-me facilmente – e a minha mulher pode confirmar isto –, mas não acho que seja uma pessoa superambic­iosa. Não querendo parecer negativo, mas não tenho expectativ­as de ser uma coisa enorme. Competitiv­o, talvez. Mas não acho que vou ganhar um Grammy, por exemplo. Sou mais de ‘mal posso esperar para acabar de fazer esta sandes porque vai estar mesmo boa’. Isso é o meu tipo de sonho. Acho que sempre fui assim, desde miúdo. Emocional.”l

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Buoys tem datade edição a 8 de fevereiro. O disco será depois apresentad­o numa tour que passa por Lisboa a 24 de abril, na Culturgest.

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