O mito da Beleza de alta manutenção.
Spoiler alert: dá trabalho.
Há muito tempo que a vaidade é um sistema composto por duas partes: baixa manutenção e alta manutenção. Antes dos testes do tipo “Qual a personagem de O Sexo e a Cidade é você?”, as mulheres já eram habitualmente inseridas numa das duas categorias.
Baixa manutenção, conforme representado numa vinheta, poderia mostrar um batom hidratante velho perdido no fundo da mala, juntamente com elásticos de cabelo – é a Beleza vista através da lente da utilidade e do autoapagamento. Uma mulher que cumpre um horário tipicamente masculino e que nunca passa mais tempo do que os rapazes a arranjar-se, que não se preocupa demasiado com a aparência, é uma mulher presumivelmente humilde, agradável e com coisas mais importantes para fazer do que embonecar-se.
Quantas vezes já viu uma rapariga descrita como “baixa manutenção” ser retratada como uma rapariga descontraída, mas que já é convencionalmente bonita, como a Cady Heron pré-plásticas de Giras e Terríveis? Ela é como todas as princesas de todos os contos de fadas:
nasceu a rapariga mais bonita da terra e continua completamente humilde e sem noção disso, apesar de lhe dizerem constantemente o quão bonita é. Não estou a dizer que a Bela de A Bela e o Monstro não seria igualmente culta, mas também não acho que fosse passar todas as noites de sábado em casa a ler livros e a preocupar-se com o pai, “o bom e velho Maurice”, não é?
Depois há a “mulher de alta manutenção”, que é precisamente o contrário – uma mulher que se entrega a todo o tipo de adornos femininos de forma obsessiva. Frequentemente tipificada pela vilã ou pela rapariga mazinha e popular do liceu, representa todas as outras características que existem perto da pior extremidade do espetro moral – exigente, oca e vaidosa. É a Regina George, que diz quando podemos ou não apanhar o cabelo num rabo de cavalo ou, numa manifestação muito mais fatal, a personagem principal possuída pelo demónio de Jennifer’s Body, que tem de comer rapazes para se manter bela e poder seduzir ainda mais rapazes para comer.
Ver umas superglamorosas Goldie Hawn e Meryl Streep literalmente desfazerem-se uma à outra em A Morte Fica-vos Tão Bem, depois
de ingerirem uma poção de imortalidade (o derradeiro remédio anti-idade, poderíamos dizer) era a hipérbole mais macabra da Beleza quando eu era mais nova. Isso ou a rainha má da Branca de Neve, tão determinada em ser a mais bela de todas que rotineiramente sugava a essência vital de virgens jovens e belas (na versão mais terrível desse conto) de aldeias vizinhas – uma rotina de cuidados faciais extremamente insustentável, na minha opinião.
O folclore e o cinema fizeram-nos acreditar que vale a pena morrer para ser bela e, embora seja divertido satirizá-la, essa crença tem consequências.
As implicações morais associadas à aparência de uma mulher e à forma como ela se cuida é suficientemente problemática, mesmo sem levarmos em consideração as pressões das normas convencionais da Beleza e o seu impacto na aceitação social, no sucesso profissional e até na saúde mental e emocional.
Entretanto, chegaram as redes sociais: celebrou-se a mulher livre e autêntica; apareceram as Kardashian; apareceu a “beleza da mulher francesa”. Talvez nos tenhamos fartado da perfeição construída ou, então, ficado fascinadas com a sua construção, fazendo com que as crónicas sobre a beleza dos bastidores se tenham tornado um sucesso. Todas queremos saber como recriar um look que admiramos ou, pelo menos, saber o que foi usado na sua criação. Interrogo-me frequentemente se Beyoncé alguma vez percebeu que o seu “I woke up like this” (acordei assim) se viria a tornar um ponto de viragem cultural.
Na opinião de algumas pessoas, usar “demasiada” maquilhagem e gastar “demasiado” tempo e dinheiro a cuidar do corpo e do cabelo significa que as mulheres mudam a aparência para tentarem parecer sexualmente disponíveis para os homens (embora, sejamos realistas, a maquilhagem e o cabelo não tenham nada a ver com as presunções masculinas sobre a disponibilidade sexual de uma mulher). Desde o início dos tempos que a Beleza é considerada a característica mais valiosa e fácil de usar de uma mulher, mas também uma coisa sobre a qual ela não tem poder decisivo. É uma questão nebulosa, na melhor das hipóteses, e perigosa na pior.
Durante algum tempo, esforcei-me por ser de baixa manutenção, apesar de a minha atenção ser sempre captada por todos os enfeites bonitos e qualquer coisa excessiva. Mais tarde, percebi que aquilo que eu cobiçava não era exatamente uma rotina de beleza simples e conveniente, mas as implicações da beleza natural e isenta de esforços na qual eu me fixara. Cheguei tarde ao jogo da Beleza. Não pude usar maquilhagem nem pintar o cabelo até andar na faculdade (embora usasse lip gloss colorido às escondidas no liceu). Originalmente, eu era a rapariga de mais baixa manutenção possível, quanto mais não fosse porque não tinha nada para manter. Por essa razão, nunca dou por garantido o controlo criativo sobre a aparência que detenho atualmente. Quando ganhamos subitamente acesso a tudo o que era previamente considerado contrabando, esse poder não passa despercebido.
Apesar do estímulo da cultura pop, a Beleza nunca foi nem nunca será apenas duas coisas. A categorização em alta e baixa manutenção tem servido, sobretudo, para estigmatizar o controlo sobre a nossa própria aparência. Quer goste de seguir as normas convencionais da Beleza que a beneficiam (ou das quais tenta beneficiar), ou a maneira como se apresenta ao mundo exija pouco tempo e planeamento, a quantidade de tempo e esforço investidos na aparência só lhe dizem respeito a si própria. No fundo de tudo isto, envergonhar alguém por usar maquilhagem ou pelo seu tipo físico, e a aclamação enviesada de certos tipos de “beleza natural” atentam contra o conceito de autonomia, coexistindo com um sistema que, na verdade, não é o melhor para ninguém. Por outras palavras, é uma armadilha.
Na paisagem contemporânea da Beleza, porém, os conceitos de Beleza de alta e baixa manutenção estão a tornar-se gradualmente mais complicados. Maquilhagem que simula a ausência de maquilhagem, tratamentos de cirurgia plástica cada vez mais acessíveis e não invasivos e maquilhagem semipermanente tornaram-se muito mais comuns graças às redes sociais. O botox e os enchimentos, as extensões de pestanas e a técnica microblading, para modelação das sobrancelhas, seriam considerados de altíssima manutenção, quanto mais não seja porque são caros e muito mais radicais do que aplicar maquilhagem. No entanto, estas medidas “radicais” para tornar a sua rotina de Beleza do dia a dia mais simples e rápida parecem completamente compatíveis com ser de baixa manutenção, embora tenham o seu preço. Isto pode, evidentemente, levá-la a questionar o que é ou não real, mas tal como as redes sociais distorcem a nossa perspetiva sobre a verdadeira aparência das pessoas, também nos mostram inúmeras possibilidades sobre a possível aparência das pessoas.
A verdadeira questão é: as mulheres não precisam de manutenção; não somos eletrodomésticos. Alta ou baixa, a manutenção não deveria significar que tomarmos conta de nós próprias é egoísta e que a autoexpressão é trabalhosa. Eu só quero usar maquilhagem e pentear-me como quiser sem que isso determine quão acessível sou ou deixo de ser e todas as outras características que lhe costumam ser associadas.
Dolly Parton defendia que não existe tal coisa como beleza natural (bem, a sua personagem em Flores de Aço dizia isso e acho que ela concordaria), e, por mais adorada que seja, ninguém pode acusar Dolly de ser de baixa manutenção. O seu glamour é flagrante e descarado, servido quente e acompanhado por uma colherada de charme, talento e perspicácia. “Se vou ter seja que aparência for, vou ter de a criar”, disse, alegadamente, Dolly. É uma frase que poderia perfeitamente sustentar a reintrodução do conceito de alta manutenção. ●