SÁBADO

O MILAGREIRO DOS SAPATOS E DAS CARTEIRAS

De uns Louboutin destruídos por um cão ou de uma Chanel com verniz, o artesão faz magia. Trabalha em Lisboa e tem uma lista de espera de 180 dias.

- Por Sónia Bento

Quem olha para Silvan Pinto com a sua barba comprida, o cabelo apanhado no alto da cabeça e os óculos de massa preta, pode imaginá-lo a tocar numa banda alternativ­a, a produzir esculturas ou a fazer qualquer outra coisa que não seja trabalhar como sapateiro. E ele próprio reconhece isso, mas Silvan é um verdadeiro artista no seu ofício. Restaura sapatos, carteiras e casacos de luxo, na sua pequena loja lisboeta do Areeiro, a Luxury Leather Spa, que está atulhada com peças de marcas como Louis Vuitton, Gucci, Chanel, Yves Saint Laurent, Prada, Christian Louboutin, Manolo Blahnik e René Caovilla, que ele arranja e ficam como novas.

O artesão, de quase 38 anos, nasceu na Suíça, onde viveu até aos 14. Aos 19, iniciou-se como sapateiro, mas contrariad­o. “Tive uma fase em que não sabia o que fazer e como não me faltava nada em casa deixava-me andar. Tentei entrar para a Força Aérea e não consegui, e também já não queria estudar. Aí, a minha mãe disse-me: ‘Malandros, cá em casa nem pensar, ou estudas ou trabalhas!’ Calhou ela ir a um sapateiro em Setúbal, que andava à procura de um ajudante, e quando chegou a casa deu-me a novidade: ‘Amanhã, vais começar a trabalhar’”, recorda à SÁBADO.

Silvan confessa que foi forçado e que detestou a experiênci­a, apesar de sempre ter tido muito jeito para trabalhos de mãos. “Era muito bom no atendiment­o ao público, mas como sapateiro nem por isso.” Entretanto, o pai, Licínio, teve a oportunida­de de abrir um espaço de conserto de sapatos, na estação de comboios Roma-Areeiro, e o filho foi trabalhar com ele. Só aí ganhou o gosto: “Para nós, não havia trabalhos impossívei­s e isso era o mais desafiante, além de irmos sempre aperfeiçoa­ndo a técnica, procurando os melhores materiais.”

O tempo é o grande desafio

Em 2008, mudaram-se para uma pequena loja, na Praça Francisco Sá Carneiro (Areeiro), onde Silvan atende o público e faz os restauros no sótão, com a sua equipa de cinco funcionári­os, entre eles uma mulher, a Ana. Diz que não é fácil arranjar profission­ais deste ofício e que prefere dar-lhes formação para se tornarem bons. “Quando recebo aqui um aprendiz, aviso-o: ‘Só daqui a quatro anos é que estás habilitado para este trabalho.’ Parece muito tempo, mas é verdade.”

Com a pandemia, o pai reformou-se, embora esteja na loja quase todos os dias. Silvan revela que no período do confinamen­to foi quando se deu a “grande mudança”. Como os pequenos serviços de capas e meias solas nos sapatos deixaram de aparecer, teve de se reinventar, voltando-se para os artigos de luxo. E começou a ser procurado por lojas que vendem artigos em segunda mão, que têm de os ter em bom estado, e por clientes particular­es. A exposição nas redes sociais também lhe deu mediatismo e

AS MULHERES SÃO AS SUAS MAIORES CLIENTES E ALGUMAS LEVAM DEZENAS DE PEÇAS DE UMA VEZ, PARA CONSERTAR

o negócio não tem parado de crescer. As mulheres são as suas maiores clientes e algumas levam dezenas de peças de uma vez, para consertar. “Faço tudo com dedicação, paixão e amor. O grande desafio é o tempo. Há artigos que recebo agora e que só estarão prontos em 180 dias porque além de ser tudo feito à mão, a procura tem sido enorme”, explica.

De um par de Louboutin destruído por cães até uma bolsa Chanel manchada de verniz que parecem não ter solução que não seja o lixo, Silvan consegue dar-lhes vida. E quanto pode custar? “Depende muito do estado da peça. Restaurar uma mala ou uns ténis Chanel custará à volta de 200 ou 300 euros e há casos que podem ir aos 700 ou 800 euros. Mas a manutenção de uns sapatos de luxo, em média, fica nuns €90”, diz. E mostra uma bolsa Versace cujo restauro vai custar €585: “A cliente chegou aqui muito aborrecida porque a filha havia comprado um produto qualquer para limpar a mala mas que a destruiu completame­nte.”

Silvan explica que o serviço é caro

“ENTRE A LOJA E O ARMAZÉM, TEREI MAIS DE 1 MILHÃO DE EUROS EM ARTIGOS DE CLIENTES”, DIZ SILVAN PINTO

porque se perde muito tempo a trabalhar o detalhe e tira da prateleira outra carteira Chanel, bege, acolchoada, que vai ter de ser pintada quadrado a quadrado. “Entre limpeza, tratamento­s e pintura, o processo demora umas seis horas. O máximo que estive à volta de uma Chanel, uma roxa que ainda está lá em cima, foram nove horas.” Silvan mostra-nos depois uma Prada, branca, que a cliente pretende reduzir em tamanho e pediu orçamento. Mas há consertos que podem ficar numa autêntica fortuna, embora tudo seja relativo. Ou seja, quem dá 30, 60 ou 100 mil euros por uma carteira Kelly ou Birkin, da Hermès, quer mantê-la em boas condições para que passe para outras gerações, tal como as joias. O restauro de uma destas peças chega a atingir os 4 ou 5 mil euros, consoante o que seja preciso consertar.

€800 esquecidos na carteira

Como para este artesão, o trabalho é um prazer, houve alturas em que chegou a sair da oficina 18 horas depois de ter entrado, e nem os fins de semana escapavam. Mas há dois anos um burnout obrigou-o a abrandar o ritmo e diz que agora “só” trabalha 12 a 14 horas. Vive em Palmela e tem um armazém para onde leva as peças, para não acumular tudo no ateliê, em Lisboa – apesar de ter alarme e seguro porque tem em mãos o restauro de centenas de valiosas carteiras. “Entre a loja e o armazém, terei mais de 1 milhão de euros em artigos de clientes. A responsabi­lidade é enorme, mas as pessoas confiam em mim e sabem que está tudo seguro. Os meus funcionári­os são tão honestos que há tempos uma senhora deixou cá uma Chanel e quando lhe fomos mexer vimos que na bolsinha interior estavam 800 euros. Avisámos a cliente que nem se lembrava daquele dinheiro. Ela até queria dar uma gorjeta porque hoje é difícil encontrar casas assim.”

Silvan Pinto publica vídeos das transforma­ções das peças, no Instagram, onde tem quase 32 mil seguidores. É muito procurado por influencer­s que lhe levam artigos para restaurar, mas ele garante que não faz borlas nem descontos: “Conhecidos ou não, são tratados como qualquer pessoa. Como veem, não preciso de publicidad­e porque clientes não me faltam. Recebo trabalhos da Bélgica, de Espanha, de França e até de Itália, onde este mercado é muito forte.”

Faz muitas pesquisas e sempre que há formações no estrangeir­o que lhe interessem Silvan não hesita porque, diz, “a aprendizag­em da técnica nunca para”. Já esteve em Milão, na feira da pele, e no fim do ano passado foi com o pai a Madrid. “Quem quiser trabalhar no mercado do luxo tem de estar constantem­ente a evoluir”, refere. Pertence ao Shoe Repair Internatio­nal, um grupo de sapateiros que se ajudam uns aos outros. “No ano passado, estava atrapalhad­o com o forro de verniz de uns Louboutin, pedi ajuda no grupo e um colega de Paris enviou-me a pele. E eu também já ajudei outros sapateiros”, conta. Garante que os seus materiais, que manda vir de Itália, são dos melhores que existem no mercado e, este ano, diz que já investiu mais de 7 mil euros em peles, tintas e maquinaria. ●

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Silvan com o pai, Licínio, com quem aprendeu a arte de sapateiro
2 Silvan com o pai, Licínio, com quem aprendeu a arte de sapateiro
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O artesão mostra algumas das dezenas de carteiras de luxo que tem no seu ateliê
1 O artesão mostra algumas das dezenas de carteiras de luxo que tem no seu ateliê
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Silvan faz parte de um grupo internacio­nal de sapateiros que se ajudam uns aos outros
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Com dois dos cinco elementos da sua equipa a trabalhar as peças à mão
4 Com dois dos cinco elementos da sua equipa a trabalhar as peças à mão

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