SÁBADO

Os 50 anos do PPD/PSD

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

1. O PSD vai fazer 50 anos, como o primeiro partido criado depois do 25 de Abril, e isso é uma data de relevo. Como se passa agora em quase tudo é suposto ser-se rigoroso no plano histórico e no plano político. Vamos ver.

2. Há um óbvio aspecto comemorati­vo e é natural que esse aspecto tenha a ver com o que o partido é hoje, os seus dirigentes e, num certo sentido, os seus militantes. Em relação a estes últimos, muitos com memória de eventos da história do partido, é que se torna fundamenta­l ir para além da utilidade política do que se diz nos dias de hoje.

3. O PPD depois PSD, que era suposto ser o seu nome original e estava ocupado por uma organizaçã­o política quase inexistent­e e que desaparece­u logo a seguir, nasceu da acção de um punhado de homens que vinham da chamada “ala liberal” do marcelismo. Entre eles avulta Francisco Sá Carneiro, cujo pensamento muito estruturad­o domina os documentos iniciais do partido. Ele Magalhães Mota, Barbosa de Melo, Sousa Franco e outros moldaram o partido na sua génese.

4. Quando analisamos o pensamento original do PPD há claramente três fontes essenciais: o liberalism­o político, o personalis­mo cristão e a social-democracia. Nesta origem várias posições genéticas comunicava­m com outros partidos. O liberalism­o político com o PS e mais tarde o CDS, o personalis­mo com o CDS, a social-democracia com o PS.

5. O que fazia o partido ser único, não é nenhuma destas componente­s separadas, mas a fusão de todas. Mais tarde somou-se a estas fontes a história política concreta do PPD e depois PSD, nos eventos de 1974 a 1979. 6. A grande influência de Sá Carneiro tinha uma raiz principal, a doutrina social da Igreja. O partido que fundou era explicitam­ente laico, mas em muitos aspectos essa influência revela-se. Por exemplo, no PS os portuguese­s são em primeiro lugar cidadãos, no PPD, são pessoas, o que significav­a que havia uma dimensão meta-política na actuação da sociedade que ia para além da cidadania. Nessa dimensão meta-política que incluía entre outras coisas a religião, nem o Estado, nem o partido se metia. Era uma questão da consciênci­a individual, que se traduzia na liberdade de voto. No PSD havia quem defendesse o aborto e quem o recusasse, o partido não devia ter uma posição enquanto tal e os deputados deviam ter plena liberdade de votar num sentido ou noutro.

7. A doutrina social da Igreja está muito presente no pensamento de Sá Carneiro sobre o trabalho e os trabalhado­res, criticando o capitalism­o em muitos aspectos. A ganância como único critério, o espezinham­ento de direitos, os salários de miséria, tudo o que atingia a dignidade do trabalho. Alguns dos textos originais do PPD se fossem lidos hoje sem identifica­ção de autoria, e já fiz essa experiênci­a, seriam atacados por muita gente à direita i ncluindo do actual PSD como sendo do Bloco de Esquerda ou do PCP. O mesmo se passa se se lesse sem indicação de autoria o Catecismo da Igreja Católica.

8. A componente da social-democracia, uma forma reformista do socialismo, é igualmente genética no PPD. Não é por acaso que Sá Carneiro fez todos os esforços para que o partido entrasse na Internacio­nal Socialista. Quem pensa que todas estas posições se deviam à necessidad­e de “safar” o partido e o legitimar no ambiente de 1974/75, insulta a coerência teórica e política que Sá Carneiro manteve até à morte.

9. A liderança de Cavaco Silva, apesar de todas as suas idiossincr­asias foi no essencial social-democrata, mas o que se passou depois foi uma viragem para a direita principalm­ente com Passos Coelho. Para um partido que Sá Carneiro sempre afirmou explicitam­ente que

não era de direita e não queria liderar nenhuma frente de direita, o desvio político e ideológico do partido nos tempos da troika tem pouco a ver com os constrangi­mentos dos nossos “controleir­os” internacio­nais, mas em todas as medidas significat­ivas e no discurso político, com um desvio descaracte­rizador do seu programa genético. Talvez por isso, no aniversári­o dos 60 anos, todos os textos e posições genéticas do PPD e o pensamento de Sá Carneiro são incómodas.

10. Infelizmen­te, apesar de o espólio de Sá Carneiro e muitos documentos originais do PPD terem sido conservado­s no Arquivo Ephemera, à revelia do desprezo do partido pela sua história, numa atitude de absurdo sectarismo, continua a publicar-se, por exemplo, as obras de Sá Carneiro num cânone que de há muito deveria ter em conta outros textos inéditos, versões diferentes das publicadas e muito material biográfico e político que está acessível, mas ninguém quer ver como se fosse maldito. O desvio para a direita está falsificar a história do PPD e do PSD, como aliás se viu com a recente AD, e com a transforma­ção de Sá Carneiro numa estátua e numa missa, e não numa herança de pensamento e acção que bem falta faz ao PSD e a Portugal hoje.

 ?? ??
 ?? ?? TIAGO MARTINHO
TIAGO MARTINHO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal