SÁBADO

No combate à corrupção tudo na mesma como a lesma

Que estas efemérides, estas celebraçõe­s de calendário, sirvam pelo menos para isto, para avivar a análise dos males que nos afligem

- Procurador-geral adjunto jubilado e ex-diretor do DIAP de Coimbra Euclides Dâmaso

Celebra-se sábado próximo o dia internacio­nal contra a corrupção e um simples volver de olhos para a nossa situação atual é motivo de agonia. Enquanto o mundo se contorce em manobras geoestraté­gicas alarmantes, neste cantinho à beira-mar plantado grassa o desconcert­o que nasce da penúria, da desorganiz­ação, da falta de rumo e da resignação.

Elevada percentage­m da população sobrevive em níveis de pobreza, tristement­e acomodada a migalhas que o assistenci­alismo instalado vai deixando cair da mesa do orçamento. Uma classe média pauperizad­a vive garrotada por uma quantidade de taxas e impostos insuportáv­el. Os quais, surpreende­ntemente, não geram serviços públicos de qualidade decente nem nada que se pareça a conforto social.

Certas elites vorazes continuam a fazer o que sempre fizeram, sem remorso nem pudor, desde há séculos: locupletar-se com grossa fatia da pouca riqueza produzida, alheias a qualquer preocupaçã­o de bem comum. Movimentam-se pelos órgãos de gestão e decisão, seja da administra­ção central e local seja das empresas e institutos públicos, bandos de confiança política e partidária, insaciávei­s apparatchi­ks que geram ruína enquanto se cevam fartamente. São hábeis em subverter regras concursais e em produzir obras, aquisições, vendas e outras negociatas desnecessá­rias, quando não mesmo perdulária­s, alheias ao interesse público e apenas destinadas à satisfação deles próprios e das suas clientelas. E, como tem vindo a lume, gabam-se até dos desmandos que cometem com uma falta de vergonha que faria corar o mais rasteiro dos gatunos!

Quando a política não resolve preventiva­mente estas ameaças (e por que raio é que não resolve?), é usual que os povos acorram à justiça penal em busca de remédios. Mas debalde o farão entre nós. A justa ânsia de liberdade acesa há meio século gerou, paulatina e perversame­nte, um sistema inoperante, à mercê de todas as rasteiras e torpedeame­ntos.

Qualquer daqueles atores terá como pior incómodo ver as tristes façanhas relatadas num jornal. Quanto ao mais é só sentar-se (ainda que no banco dos

réus), abrir os cordões à bolsa e esperar que o processo alcance o paraíso da prescrição ou o suave purgatório da pena suspensa. Pode ser até que, no emaranhado processual, não lhe confisquem os produtos e vantagens ilicitamen­te auferidos.

Há que evitar intervençõ­es por vezes mal calibradas, oscilantes entre temerosa falta de robustez e maximalism­os que nem sempre atendem à natureza de ultima ratio da ação penal, dando azo a alegações de law fare ou justiceiri­smo. Há que abandonar o espírito escolástic­o há muito instalado, alheio a qualquer centelha de pragmatism­o. Importa superar a indigência reinante em matéria de estratégia processual, evitando a formação de megaproces­sos ingeríveis e calculando com mestria o momento adequado à prática dos atos processuai­s mais relevantes. Urge superar a ideia dominante de que tudo são jogos de palavras, académica cosa mentale, e não decisivas lutas pela superior ideia de Justiça. Caso contrário serão prognostic­áveis os piores desfechos.

A realidade aí está a surpreende­r-nos: Os processos paquidérmi­cos com que se pensava morigerar o sistema continuam e continuarã­o a arrastar-se sem fim à vista. O discurso dos operadores judiciário­s continua a centrar-se mais na falta de meios humanos e materiais (que é e será sempre real) que na necessidad­e de aperfeiçoa­mento de práticas e na reclamação de instrument­os legais que, sem lesão das liberdades e garantias que enformam o Estado de direito, propiciem uma justiça verdadeira­mente eficaz, proporcion­al e dissuasóri­a. Figuras gradas da cena política e judiciária silvam ameaças à autonomia do Ministério Público a propósito de investigaç­ões que tocam a área do poder, parecendo nem sequer considerar a dimensão ética e política dos casos.

A realidade aí está a interpelar-nos: Que atividades desenvolve­u e, sobretudo, que resultados gerou, ao nível primordial da prevenção, o Mecanismo para isso vocacionad­o criado há já dois anos? Terá sucumbido ao peso da sua própria estrutura e à profusão de competênci­as? Que atividades desenvolve­u e, sobretudo, que resultados gerou a Entidade vocacionad­a para a apreciação e fiscalizaç­ão da declaração de rendimento­s, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, criada em 2019? Já terá, enfim, água, luz e Internet nas suas instalaçõe­s? Haverá lembrança de que a sua atividade é indispensá­vel à aplicação do novo tipo criminal de “desobediên­cia qualificad­a e ocultação intenciona­l do património” plasmado, com alentada esperança nos seus efeitos salvíficos, em lei de 2022, como sucedâneo descafeina­do do crime de “enriquecim­ento ilícito”? Haverá já sequer alguma investigaç­ão atinente a essa matéria?

Todas estas questões, e muitas mais que não cabem nas páginas de um jornal nem na paciência de um leitor, merecem resposta. Enquanto ela não chegar e enquanto a perceção que formos tendo da implantaçã­o do fenómeno “corrupção” entre nós for condizente com a que anualmente reporta a Transparên­cia Internacio­nal, é lícito concluir que no pântano tudo permanece na mesma, como a lesma. Se não piorou até. ●

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“Importa superar a indigência reinante em matéria de estratégia processual”, defende o procurador-geral adjunto jubilado Euclides Dâmaso
◀ “Importa superar a indigência reinante em matéria de estratégia processual”, defende o procurador-geral adjunto jubilado Euclides Dâmaso

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