No combate à corrupção tudo na mesma como a lesma
Que estas efemérides, estas celebrações de calendário, sirvam pelo menos para isto, para avivar a análise dos males que nos afligem
Celebra-se sábado próximo o dia internacional contra a corrupção e um simples volver de olhos para a nossa situação atual é motivo de agonia. Enquanto o mundo se contorce em manobras geoestratégicas alarmantes, neste cantinho à beira-mar plantado grassa o desconcerto que nasce da penúria, da desorganização, da falta de rumo e da resignação.
Elevada percentagem da população sobrevive em níveis de pobreza, tristemente acomodada a migalhas que o assistencialismo instalado vai deixando cair da mesa do orçamento. Uma classe média pauperizada vive garrotada por uma quantidade de taxas e impostos insuportável. Os quais, surpreendentemente, não geram serviços públicos de qualidade decente nem nada que se pareça a conforto social.
Certas elites vorazes continuam a fazer o que sempre fizeram, sem remorso nem pudor, desde há séculos: locupletar-se com grossa fatia da pouca riqueza produzida, alheias a qualquer preocupação de bem comum. Movimentam-se pelos órgãos de gestão e decisão, seja da administração central e local seja das empresas e institutos públicos, bandos de confiança política e partidária, insaciáveis apparatchiks que geram ruína enquanto se cevam fartamente. São hábeis em subverter regras concursais e em produzir obras, aquisições, vendas e outras negociatas desnecessárias, quando não mesmo perdulárias, alheias ao interesse público e apenas destinadas à satisfação deles próprios e das suas clientelas. E, como tem vindo a lume, gabam-se até dos desmandos que cometem com uma falta de vergonha que faria corar o mais rasteiro dos gatunos!
Quando a política não resolve preventivamente estas ameaças (e por que raio é que não resolve?), é usual que os povos acorram à justiça penal em busca de remédios. Mas debalde o farão entre nós. A justa ânsia de liberdade acesa há meio século gerou, paulatina e perversamente, um sistema inoperante, à mercê de todas as rasteiras e torpedeamentos.
Qualquer daqueles atores terá como pior incómodo ver as tristes façanhas relatadas num jornal. Quanto ao mais é só sentar-se (ainda que no banco dos
réus), abrir os cordões à bolsa e esperar que o processo alcance o paraíso da prescrição ou o suave purgatório da pena suspensa. Pode ser até que, no emaranhado processual, não lhe confisquem os produtos e vantagens ilicitamente auferidos.
Há que evitar intervenções por vezes mal calibradas, oscilantes entre temerosa falta de robustez e maximalismos que nem sempre atendem à natureza de ultima ratio da ação penal, dando azo a alegações de law fare ou justiceirismo. Há que abandonar o espírito escolástico há muito instalado, alheio a qualquer centelha de pragmatismo. Importa superar a indigência reinante em matéria de estratégia processual, evitando a formação de megaprocessos ingeríveis e calculando com mestria o momento adequado à prática dos atos processuais mais relevantes. Urge superar a ideia dominante de que tudo são jogos de palavras, académica cosa mentale, e não decisivas lutas pela superior ideia de Justiça. Caso contrário serão prognosticáveis os piores desfechos.
A realidade aí está a surpreender-nos: Os processos paquidérmicos com que se pensava morigerar o sistema continuam e continuarão a arrastar-se sem fim à vista. O discurso dos operadores judiciários continua a centrar-se mais na falta de meios humanos e materiais (que é e será sempre real) que na necessidade de aperfeiçoamento de práticas e na reclamação de instrumentos legais que, sem lesão das liberdades e garantias que enformam o Estado de direito, propiciem uma justiça verdadeiramente eficaz, proporcional e dissuasória. Figuras gradas da cena política e judiciária silvam ameaças à autonomia do Ministério Público a propósito de investigações que tocam a área do poder, parecendo nem sequer considerar a dimensão ética e política dos casos.
A realidade aí está a interpelar-nos: Que atividades desenvolveu e, sobretudo, que resultados gerou, ao nível primordial da prevenção, o Mecanismo para isso vocacionado criado há já dois anos? Terá sucumbido ao peso da sua própria estrutura e à profusão de competências? Que atividades desenvolveu e, sobretudo, que resultados gerou a Entidade vocacionada para a apreciação e fiscalização da declaração de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, criada em 2019? Já terá, enfim, água, luz e Internet nas suas instalações? Haverá lembrança de que a sua atividade é indispensável à aplicação do novo tipo criminal de “desobediência qualificada e ocultação intencional do património” plasmado, com alentada esperança nos seus efeitos salvíficos, em lei de 2022, como sucedâneo descafeinado do crime de “enriquecimento ilícito”? Haverá já sequer alguma investigação atinente a essa matéria?
Todas estas questões, e muitas mais que não cabem nas páginas de um jornal nem na paciência de um leitor, merecem resposta. Enquanto ela não chegar e enquanto a perceção que formos tendo da implantação do fenómeno “corrupção” entre nós for condizente com a que anualmente reporta a Transparência Internacional, é lícito concluir que no pântano tudo permanece na mesma, como a lesma. Se não piorou até. ●