As lições a tirar da pandemia
Como em todas as grandes ruturas históricas, também nesta pandemia é quase infinito o potencial de mudança que ela comporta nos domínios da política e da sociedade. A mais evidente é a grande possibilidade que aqui nasce de transformar as políticas públicas de saúde no objeto de um vasto consenso político e social, em particular a construção de serviços nacionais de saúde fortes, bem financiados e bem avaliados. A defesa do Serviço Nacional de Saúde é um património ideológico da esquerda? Historicamente, sem dúvida. Mas vão perguntar aos conservadores ingleses e à liderança de Boris Johnson o que pensam disso. O desastre inglês e o norte-americano no combate à pandemia representam verdadeiros vírus revolucionários, que se esperam benignos nesta nova estirpe. Autênticos sismos políticos, capazes de levar largas faixas das opiniões públicas destes países a pedirem políticas públicas sérias em áreas como a saúde e a educação, uma e outra alicerces centrais de valores democráticos como a igualdade de todos nas oportunidades e no respeito pela dignidade humana.
Mas num plano menos ideológico, esta crise também nos remete para a capacidade e competência da governação dos países. Uma coisa é o necessário consenso e união para enfrentar a crise sanitária no momento em que estamos no olho do furacão. Outra bem diversa seria abdicar de fazer política, dando-lhe o seu sentido mais nobre, e não escrutinar o que aconteceu nos três meses mais diabólicos das nossas vidas. E aí, o consenso emergente é que ninguém se preparou a sério para a tempestade. Pior: a Europa olhou para a expansão do vírus de forma absolutamente eurocêntrica, como sempre, acreditando que, mais uma vez, este vírus seria um “problema chinês”, tal como já tinham sido a gripe das aves, ou um “problema africano”, como foi o ébola.
A Europa e o resto do mundo desenvolvido criaram uma incompreensível cortina sanitária, de contornos até um pouco xenófobos, aqui e ali, em relação às emergências sanitárias epidémicas, relacionando-as com a pobreza e o subdesenvolvimento do Terceiro Mundo ou diferenças culturais de outros povos. Por isso, acumulamos décadas de desinvestimento na ciência em geral e na investigação em saúde, em particular. Ou entregámo-la alegremente aos grandes blocos industriais da saúde e a mecenas como Bill Gates, repousando a consciência coletiva numa definição de prioridades políticas na matéria que quase já nem passa pela decisão dos Governos. É como se fosse um território de outros, que não os países soberanos, as suas democracias, as suas instituições e os seus povos.
A perversidade deste alheamento manifestou-se de forma implacável quando o mundo acordou com a pandemia a cobrir o céu azul que aí vinha, para mais um esplendoroso tempo de primavera e de verão. Um tempo onde só devemos viver em plena liberdade, junto de quem gostamos, no apogeu do contacto emocional e físico.
A evidência de não ter sido assegurado o abastecimento de material sanitário básico; a falta de testes de diagnóstico e de meios de proteção para os profissionais de saúde e para a população em geral; a falta de ventiladores; o ambiente do salve-se quem puder que se criou na compra destes materiais, fazendo regressar a pirataria entre países e fomentando o crime, quer através dos roubos de material, quer do terreno dado de bandeja a especuladores e açambarcadores; os desencontros dentro da União Europeia, a mostrar um inaceitável renascimento do
protecionismo, que não é, manifestamente, a melhor maneira de lutar contra uma pandemia; os egoísmos nacionais a roerem por dentro políticas económico-financeiras comuns para enfrentar a crise económica: tudo isto e muitas outras coisas mostraram que temos muito a aprender com esta crise. E que ou aprendemos ou morremos. Não há uma terceira via. Se não estivermos todos juntos, seja na forma de enfrentar o vírus, seja na de fazer política e um escrutínio público do que os Governos fizeram ou não, ficaremos mais perto do precipício coletivo do que da porta de saída destes dias terríveis para o mundo.
O caminho de Costa e Rio
Sobre a cerimónia do 25 de Abril não vale a pena perder muito tempo. Acabou por ser o que deveria ter sido desde o princípio. Ficaram os discursos. Marcelo Rebelo de Sousa voltou a fazer um discurso marcante. Aqui e ali muito justificativo, mas acertadamente a valorizar a celebração das datas fundacionais do País e, em primeira linha, do 25 de Abril. A definir o que é essencial e o que é efémero (a polémica peticionária), a apontar os caminhos que temos de trilhar, todos, sem exceção. Quase a abrir caminho para o imperativo categórico de uma recandidatura presidencial, cujas eleições vão disputar-se, seguramente, ainda no contexto do desafio pandémico. Aquele contexto em que os comandantes não abandonam os barcos.
Por fim, o discurso de Rui Rio. É uma peça importante que encaixa na progressiva disponibilidade de António Costa para ir dando a mão ao líder do PSD, como aconteceu com o IVA das máscaras. Rio criticou mas também estendeu a mão. Criticou a propaganda governamental, mas deixou claro que está disponível para se juntar ao Governo no caso de ser necessário enfrentar um período de austeridade. Alertou que mais vale “prevenir do que remediar” e que podem não adiantar grande coisa as proclamações antiausteritárias do Governo e dos seus parceiros de geringonça. Rio disse-o num tom de quem quer dar um banho de realismo ao tempo político e que está pronto para os sacrifícios que forem necessários, desde que sejam em nome da sua ideia de salvação nacional. A ideia de um Bloco Central, ou seja, a união governativa ou apenas parlamentar, que seja, do PS e PSD, não é simpática. Os dois partidos tendem sempre a uma ocupação esmagadora do Estado e a potenciar graves fenómenos de nepotismo e corrupção. Mas o Bloco Central que governou entre 1983 e 1985, liderado por Mário Soares e por Carlos Mota Pinto teve outra característica inquestionável: foi a necessária solução de estabilidade política para enfrentar um grave período de crise económica, balizado por duas intervenções brutais do FMI, a primeira em 1977 e a segunda em 1983. É isso que Rui Rio tem na cabeça. E é isso que é plausível pensar, face aos dados da presente equação, em que sabemos, com toda a certeza, que vamos ter uma crise profundíssima, sabendo como entramos, mas não quando ou como saímos. António Costa também sabe que não pode descartar nenhuma oferta de caminho. Sobretudo sabe que não pode ficar nas mãos dos seus aliados de geringonça e que tem de ter um plano B. Na semana que passou esses astros do centrão político começaram a alinhar-se com mais nitidez. Resta saber se isso não é uma forma de prolongar o tempo de exceção por outros meios. W