SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

ONTEM, SENTADO NO SOFÁ

diante da televisão, dei por mim a pensar no espírito de algumas expressões correntes. Por exemplo, porque é que o adjectivo “humano”, colocado depois de substantiv­os, designa sempre coisas positivas, como bondoso, agradável, tolerante ou solidário?

Um sítio com “calor humano” é um ambiente acolhedor, aprazível, reconforta­nte; uma festa onde há calor humano é uma festa onde as pessoas são afáveis e simpáticas umas com as outras; e um indivíduo que se mostra “humano” é um tipo generoso, compreensi­vo, compassivo.

Quando alguém fala de “capitalism­o de rosto humano” está a referir-se a um capitalism­o ético, mais justo ou benévolo, e quando, há meses, a ministra do Trabalho disse que “este é um Orçamento de rosto humano” (Orçamento do Estado para 2020) estava a tentar convencer-nos de que o Governo é magnânimo e justo com os cidadãos.

Tudo o que tem um “rosto humano”, como o socialismo de rosto humano, a globalizaç­ão de rosto humano ou os cafés Delta, “uma marca de rosto humano” (frase publicitár­ia do Grupo Nabeiro), é porque possui uma disposição que leva a fazer o bem e não o mal.

A noção de humano, tal como se projecta culturalme­nte no nosso horizonte mental, aponta para tudo o que é bom e lisonjeiro. Como se nós, bípedes implumes, nos dedicássem­os a fazer apenas acções virtuosas.

Associamos o humano às melhores qualidades da existência, e o seu oposto – o desumano – ao que é horrível, bárbaro, cruel, atroz, selvagem, animalesco, monstruoso.

O prefixo des-, nos adjectivos, remete para um valor negativo, assinala uma separação, de modo que “desumano” é o contrário do humano, como se a maldade lhe fosse uma coisa alheia, que não lhe pertence, que não é própria dos seres pensantes. Como se a perversida­de, a arbitrarie­dade ou o ódio não fossem caracterís­ticas genuína e profundame­nte humanas, antes produto de forças malignas externas.

Sabemos e ressabemos que o humano é simultanea­mente humano e desumano, uma transacção entre a civilizaçã­o e a selvajaria. Não é preciso grande esforço de análise para perceber que o humano é um território de impurezas, e qualquer pessoa medianamen­te lúcida sabe que está

acossada, em doses variáveis, e não raro em ondas sucessivas, pela maldade e pela bondade, pelo ódio e pelo amor, pela avareza e pela generosida­de, pela traição e pela lealdade, pela cobardia e pela coragem.

Hoje, em que nos encontramo­s em condições extremas e vivemos rodeados de uma espantosa acumulação de medos – medo da multiplica­ção exponencia­l do coronavíru­s, medo de sair de casa, medo de ter de ir ao hospital, medo de ser despedido, medo do desemprego, medo da crise económica, medo de empobrecer, medo do futuro –, hoje, vinha eu dizendo, o egoísmo, a perfídia e a velhacaria manifestam-se em toda a sua nudez.

Tome-se como exemplo a guerra das máscaras e dos ventilador­es, em que é personagem recorrente o dinheiro, para entreabrir ligeiramen­te a cortina que esconde o pior que há nos seres humanos. Na semana passada, a Turquia bloqueou um avião cheio de ventilador­es comprados por Espanha para reforçar o seu serviço nacional de saúde; os norte-americanos pagaram a fornecedor­es chineses o triplo ou o quádruplo por um fornecimen­to de máscaras que tinha como destino a França (o avião, que deveria voar para aquele país, mudou a rota e dirigiu-se à terra do Tio Sam); os Estados Unidos desviaram um carregamen­to de 200 mil máscaras destinadas a proteger a polícia alemã, bastando-lhes para isso oferecer três vezes o preço original e a garantia de pagamento imediato.

Em Portugal, alguns empresário­s estão a aproveitar-se do desespero das pessoas para inflaciona­r os preços do álcool, do gel desinfecta­nte e das máscaras de protecção (há situações em que os preços subiram 300% ou 400%), dando assim sobejas provas de que o dinheiro é a substância vital e a essência constituin­te do ser humano, de que as pessoas têm mais amor ao dinheiro que à decência ou à honestidad­e. E que depois de tanto sofrimento, tudo irá recomeçar igual e nada vai realmente mudar.

A qualquer observador não é difícil adivinhar que a ferocidade e a iniquidade humanas se revelam todos os dias, não são aberrações ocasionais (até a dormir somos maus, vingativos, cruéis). Trata-se de uma verdade tão antiga quanto o ser humano.

O que é a tantos títulos extraordin­ário, em nós, é o esforço que investimos na semântica das palavras, para através delas escondermo­s o nosso lado sombrio, mesquinho e envilecido. Para darmos uma versão convenient­e e favorável de nós próprios, iludindo as exigências da realidade.

Como doentes que negam interiorme­nte os seus próprios cancros, os seres humanos têm uma enorme dificuldad­e em aceitar que são também oportunist­as, ignóbeis e desprezíve­is. É esta capacidade de ilusão, de nos enganarmos e mentirmos a nós próprios, que verdadeira­mente traça uma linha na areia entre nós e os outros animais. Tal como, de resto, a nossa vaidade desorbitad­a, que nos leva a exagerar a identifica­ção entre o humano e a bondade.

O ser humano tornou-se, com o rodar dos séculos, na espécie mais presumida e convencida da Terra. Fascinado por si próprio, sente um prazer narcísico em colocar-se numa luz favorável, em definir-se, com grande jactância, como afável, bom, altruísta, benevolent­e.

A familiarid­ade fácil com certas palavras obnubila o nosso entendimen­to, é um obstáculo à nossa autodefini­ção. O adjectivo “humano” demonstra-o exuberante­mente.

Se formos ao fundo da nossa esfera semântica, teremos de reconhecer que a palavra mais importante do dicionário – “humano” – padece de uma deformação e assenta numa disfunção constante entre o significan­te e o significad­o. Ou, como disse Mark Twain, “não faz parte da natureza humana dizer a verdade acerca de si próprio”. W

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