ESTADO A INCRÍVEL MÁQUINA DE TRITURAR DINHEIRO
Carros reparados por 33 mil euros, milhões gastos em música, bombons e relógios, contratos opacos e descontrolo. Sob o excedente histórico das contas públicas vai sobrevivendo o regabofe no uso do dinheiro dos contribuintes.
Só em espetáculos a solo, as várias autarquias e freguesias do País gastaram, entre 2018 e 2019, mais de 360 mil euros em concertos de Carolina Deslandes, uma das artistas do momento. E se uma atuação de 75 minutos no âmbito da Programação do Cine-Teatro de Estarreja ficou por 6.500 euros, o concerto das comemorações do 25 de Abril, no Funchal, foi adjudicado por 55.640,50 euros – estes contratos incluem, geralmente, transporte, o que explicará uma parte da diferença.
Está longe de ser caso único. Uma busca por “espetáculo musical” e “concerto” no portal Base, onde são divulgados os contratos públicos, leva-nos a um total próximo de 10 milhões de euros saídos sobretudo dos cofres municipais – e isto apenas em 2019. “Os concertos grátis são uma coisa que sempre pagámos muito”, diz Rui Oliveira Marques, coautor do blogue Má Despesa Pública, que se dedicou a expor as bizarrias e fintas de quem gere o dinheiro dos contribuintes. “As pessoas muitas vezes não têm consciência, mas estão a pagar estes concertos.”
Num universo global de despesa corrente primária que vai superar 81 mil milhões de euros este ano (segundo o Orçamento do Estado que esta semana está a ser avaliado pelo Presidente da República), os gastos de milhares de euros podem parecer triviais, mas não são. Se espreitarmos debaixo do excedente orçamental histórico em democracia, que pode ter sido conseguido já em 2019, vemos ainda despesismo à antiga, contratualização pública habilmente opaca e transgressora das regras e descontrolo do dinheiro público. É um problema transversal a todas as esferas do Estado, que vai de uma lista infindável de gastos “pequenos” – que juntos somam milhões – a rombos de dezenas ou de centenas de milhões de euros arrecadados todos os anos às pessoas e às empresas.
“Do ponto de vista de magnitude e de importância, não vale a pena, por exemplo, pensar que resolvemos algum problema com os carros [caros] dos políticos, mas há uma questão de probidade e de quase decência. O Estado deve ser um standard de exemplo para as outras instituições”, defende Pedro Camões, professor da Universidade do Minho e especialista em administração pública. Até porque, fora de Portugal, as coisas são diferentes, garante: “Há dois anos almocei em Gotemburgo, a convite de um professor muito conhecido na área da transparência e corrupção. Nesse almoço, pedimos ambos bebidas alcoólicas e, por isso mesmo, ele recusou que fosse o Instituto que dirigia a pagar a refeição. Aqui pedem-se vinhos caros.”
10 MILHÕES DE EUROS EM MÚSICA – A FATURA FOI PAGA SOBRETUDO PELAS AUTARQUIAS NACIONAIS
O arranjo de 33 mil euros do carro de Cavaco Silva
A fatura de 32.969,57 euros chegou ao Palácio de Belém em outubro de 2018. A conta vinha do representante da Mercedes em Portugal, C. Santos, e dizia respeito à reparação de um carro: a viatura ao serviço do gabinete do ex-Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. O Mercedes S420 CDI longo, adquirido em 2007 para o serviço do então Chefe do Estado, tinha mais de 270 mil quilómetros quando se decidiu substituir o motor. Apesar de o valor final da reparação ser superior ao limite de 20 mil euros, o contrato foi celebrado por ajuste direto. No documento, a secretaria-geral da Presidência da República (SGPR) justifica a opção com uma alínea da lei que permite o ajuste direto perante “uma urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”. A SÁBADO questionou por que motivo, dado o elevado valor da despesa, não se ponderou comprar outro carro? Resposta: o custo da reparação foi “inferior” ao custo de uma nova viatura. “Nestas circunstâncias e tomando em consideração a opção do utilizador, foi decidido proceder à reparação.” O gabinete de Cavaco Silva remeteu esclarecimentos para a SGPR.
Carros públicos a 40 mil euros
Em novembro de 2018, a Associação Nacional de Municípios publicou, de forma detalhada, os requisitos do contrato para a compra de uma viatura nova: devia ser um automóvel de cinco lugares, com quatro portas e a diesel, ter até 200 cavalos de potência e no máximo 2.000 cm3 de cilindrada, caixa automática, GPS, airbags frontais e laterais, sistema start & stop, sensor de luz, chuva, parqueamento, sensores de estacionamento à frente e atrás, estofos em pele, preferencialmente preto meta- Q
lizado. Preço? 41.869,92 euros (não se sabe se com ou sem IVA). Só faltou a marca do carro. A SÁBADO
perguntou, mas não teve resposta. “O carro e o modelo deviam aparecer, até por questões de benchmark,
para percebermos se o preço pago é ou não normal tendo em conta o mercado. Não é nenhuma informação pessoal ou privada”, defende Rui Oliveira Marques.
Acontece o mesmo com as viaturas compradas pelo Banco de Portugal. Entre o ano passado e o início deste ano foram adquiridos pelo menos 14 automóveis, todos por mais de 35 mil euros – o mais caro custou cerca de 50 mil euros. Em apenas dois casos encontrámos a marca e modelo das viaturas (Mercedes Benz C200 Station e Mercedes Benz B 200) – é provável que haja mais automóveis desta marca, uma vez que os contratos são celebrados com o seu representante oficial. A
SÁBADO perguntou quais eram as marcas e modelos das restantes viaturas e qual o motivo de essa informação não ter sido disponibilizada. Resposta: “A informação disponível sobre estes contratos é a que pode ser consultada no Portal Base.” Rui Oliveira Marques não estranha: “Nunca foi fácil obter este tipo de esclarecimentos por parte do Banco Portugal.” Além disso, “o Banco de Portugal sempre revelou um nível de vida que não se encontra
SÓ ESTE ANO O GOVERNO CUSTOU MAIS 21,7 MILHÕES DE EUROS DO QUE O EXECUTIVO DE 2015 DE PASSOS COELHO
em nenhuma outra entidade pública”, acrescenta. “Estes contratos estão fora de qualquer escrutínio, porque que o Banco de Portugal está na esfera dos bancos centrais europeus. É como se não fosse uma entidade pública, como se vivesse fora do Estado”, defende Pedro Camões. Mas é pública: os seus lucros geram dividendos para o Estado.
A falta de transparência é uma das críticas feitas ao atual Governo. “O contrato com a Web Summit, que toda a gente sabe que existe, e que não põe em causa a Segurança Nacional, nunca foi divulgado. Pedimos várias vezes que isso acontecesse”, critica Rui Oliveira Marques. O secretismo estendia-se ao acordo celebrado com a Câmara de Lisboa: ao contrário do que acontece habitualmente, nunca foi distribuído aos vereadores – podiam apenas consultá-lo presencialmente num gabinete do município, desde que não tirassem fotocópias ou fotografias às páginas: no último caso, assim que o tentou fazer, João Pedro Costa, vereador do PSD, viu o documento ser-lhe retirado das mãos. Despesa em causa? Pelo menos 8 milhões de euros por ano.
O Governo de António Costa também engordou. No total, só este ano custa mais 21,7 milhões de euros que o Governo de 2015 de Passos Coelho, saído da magreza da troika – se aguentar toda a legislatura, serão 87 milhões de euros em despesa adicional com o funcionamento dos gabinetes, um salto de 42%. No Ministério da Economia, por exemplo, há 12 motoristas, o dobro dos que aparecem na lista de nomeações do Ministério das Finanças, que tem o mesmo número de Secretarias de Estado – esta diferença equivale a mais de 178 mil euros por ano. Os motoristas são apenas uma parte da conta que cresceu com a multiplicação de ministérios (19) e de secretarias de Estado (50).
Treze mil euros para renovar um gabinete de trabalho? Também acontece. Neste caso, a despesa foi paga pela Câmara de Lisboa, no gabinete de Manuel Salgado, que um mês depois das alterações deixou de ser vereador. Em declarações ao Jornal de Negócios, a autarquia
explicou que esta compra se inseria “no âmbito de outras aquisições de mobiliário que a CML fez para espaços municipais”. E que, com a saída de Salgado, o mobiliário passaria para o vereador seguinte com os mesmos pelouros – Obras, Urbanismo e Património.
Festas, caterings... e mais música
Todos os anos, no aniversário do Banco de Portugal, há festa garantida. Em 2019, quando o regulador fez 153 anos, a fatura superou os 50 mil euros: a maior fatia, 20.046 euros foram gastos em catering.E quanto custou a cerimónia de abertura do ano letivo à Câmara Municipal de Lisboa? Pelo menos 28 mil euros, perto de metade no cocktail servido no Castelo de São Jorge, em setembro. Já Oeiras gastou 18 mil euros em bombons Villa Oeiras.
No que diz respeito à programação musical, Matosinhos, por exemplo, é uma câmara bastante ativa – em 2019, gastou mais de 500 mil euros em concertos. O contrato mais alto? Três espetáculos de Blaya, GNR e Ana Moura, adjudicados em junho, por 142.910 euros.
Geralmente são as festas de fim de ano das cidades maiores que motivaram os contratos mais caros: os Ornatos Violeta tocaram uma hora e meia na última passagem de ano em Lisboa por 77 mil euros; os
Xutos & Pontapés cobraram 55 mil na mesma noite – no total, a fatura foi de 244 mil euros (incluindo montagem do palco).
Os transversais brindes e relógios
Municípios, empresas públicas, organismos ministeriais e até reguladores publicaram, em 2019, contratos num total de 3,99 milhões de euros em brindes. Estão lá os clássicos sacos, fitas e T-shirts com logótipos do comprador até às “lancheiras gravadas” adquiridas por 15.938 euros (mais IVA) pela câmara do Seixal para oferecer no início do ano letivo. E vários exemplos de peças em ouro: Castelo Branco comprou quatro medalhas por 9.640 euros, Silves tem um contrato de 9.329 euros para 25 alfinetes de lapela, o mesmo número de estojos forrados a veludo e 50 canetas de metal com gravação a laser e banho de ouro (estojo almofadado incluído). “Um exemplo paradigmático de brindes”, nota Rui Oliveira Q