Uma justiça siciliana
Não é a primeira vez que um caso da justiça portuguesa me transporta para a evocação de Corrado Carnevale, um antigo juiz do Supremo Tribunal de Justiça italiano. Este juiz, nascido em Licata, província de Agrigento, Sicília, entrou na história sinistra de Itália como o melhor e mais eficaz amigo da máfia. Antes e depois das bombas e dos tiros que mataram tantos polícias e juízes – de que Giovanni Falcone e Paolo Borsellino são as expressões maiores mas não as únicas –, Carnevale anulou mais de 500 sentenças relacionadas com a máfia e o crime organizado em geral.
No auge do poder de que dispunha na secção penal do Supremo italiano estava pronto para dinamitar o maxiprocesso de Palermo, que condenou toda a estrutura dirigente e operacional dos clãs mafiosos da Sicília, com questões processuais. Antes, já tinha exercitado a argumentação nos tais 500 processos que pulverizou, sempre com grande retórica garantística e do lado dos direitos fundamentais, o que lhe valeu o epíteto de “assassino de sentenças”.
Nuns casos, Carnevale atacou o excesso de prisão preventiva. Noutros, a credibilidade dos arrependidos. Em muitos, agarrou-se à diabolização da prova indireta e a questões de formalismo processual. Chegou a defender que a máfia não existia.
Em todos os processos prevaleceu uma lógica imparável nesses anos de total promiscuidade entre poderes político, económico e judicial: a distribuição foi sempre controlada pela máfia, através dos seus aliados na política e nos tribunais, ou seja, políticos como Giulio Andreotti e juízes como Carnevale. Mesmo aqueles casos sobre os primeiros homicídios de polícias e magistrados, como foram os do procurador-geral de Palermo Rocco Chinnici e o inspetor Boris Giuliano passaram pelo crivo da distribuição mafiosa. O Estado italiano era o melhor cúmplice da máfia. Controlando a distribuição, em particular na segunda e na terceira instância judicial, os mafiosos controlavam o resultado e conquistavam a impunidade.
Carnevale, nascido em 1930, alegou toda a vida desconhecer o que é a máfia, apesar de ser oriundo de um território em que são visíveis todas as consequências terríveis do poder da Cosa Nostra, materializadas em centenas de mortes e na destruição urbanística de Agrigento. Esse desconhecimento foi totalmente desmontado pela história. A dinâmica gerada pela convergência de duas grandes lutas da magistratura italiana, contra a máfia em Palermo e contra a corrupção na Operação Mãos Limpas, a partir de Milão, evidenciou a cumplicidade de Corrado Carnevale com a Cosa Nostra. Desde logo, com aquela que lhe era mais próxima, na política de Roma e no mundo siciliano entre a sua Agrigento natal, onde mandavam os Liggi, Riina, Provenzano e outros, entre os quais alguns amigos e compadres de Carnevale. Como o próprio Berlusconi, que viria a reabilitá-lo, num dos mais tenebrosos processos legislativos que uma democracia pode gerar.
Salvaguardada a devida distância sociológica, digamos assim, é espantosa a similitude com alguns modos de atuar e com personagens que temos por cá. É espantosa a aproximação a este caso dos sorteios “viciados” que ensombram a justiça portuguesa. Lembra-nos os “assassinos de sentenças” que campeiam em alguns tribunais superiores. Estão sempre próximos dos queixosos ilustres e muito longe dos que lutam diariamente, nos tribunais, por uma ideia de justiça. Estão sempre prontos a moldar a elasticidade da ciência jurídica para a realidade que mais lhes interessa. São sempre aplaudidos pelos tartufos do costume nas conversas de café das tertúlias de má língua do late-night televisivo. No dia em que vencerem acabou o Estado de direito democrático. E vencê-los só será possível se os juízes dignos desse nome se rebelarem contra os verdadeiros bandidos de toga que conspurcam o nome da magistratura, da justiça e do regime democrático.W