SÁBADO

COVID-19: UM PAÍS EM ALERTA

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Há escolas e universida­des fechadas, hospitais sem visitas e prisões com medidas de contenção

ANA MOTA FERREIRA • Idade 33 anos • Doença Esclerose Múltipla

“TUDO NA VIDA TEM UM LADO

POSITIVO e outro negativo e nós é que decidimos qual valorizamo­s mais. Tudo o que acontece traz-nos coisas boas e a esclerose também me trouxe: alimentaçã­o melhor, menos stress, mais descanso. Apesar do cansaço, de fazer medicação e das limitações, o balanço é mais positivo do que negativo.

Só fui diagnostic­ada em 2015, mas foi no fim de 2014 que veio a bomba, por assim dizer. Foi no dia de aniversári­o do meu sobrinho, a 11 de setembro. Comecei a sentir a perna esquerda dormente, a certa altura perdi a sensibilid­ade e tinha um cansaço enorme. Eu sou atriz, marionetis­ta e professora de teatro. Tenho uma vida muito agitada, mas aquele não era um cansaço normal.

A primeira coisa que pensei foi que ia ter de deixar a minha profissão. `Se eu não controlo o meu corpo, como é que posso ser atriz?' Isso foi o que me assustou mais. Estava sozinha nesse dia e foi um bocadinho duro. Mas, logo a seguir, fui para um ensaio – estava a fazer o Rei Artur. Primeiro, tive um momento de quebra com o encenador, chorei, chorei, chorei e contei-lhe. Depois do ensaio, fui ter com o meu namorado e, só quando me acalmei, é que fui ter com o meu sobrinho dar-lhe os parabéns – como se estivesse tudo bem.

Uma coisa que decidi na altura do diagnóstic­o foi que queria ser mãe. Nunca tens de pensar no teu futuro, estás a viver o dia a dia e, de repente, cai-te uma doença no colo e tens de pensar o que vai acontecer dali a 10 ou 20 anos. Foi nessa altura que comecei a tentar engravidar.

A minha vida é ótima. OK, tenho esclerose, mas há tantas pessoas com problemas mais difíceis. Eu tenho comigo uma pessoa que amo e que me ajuda em tudo, agora tenho um filho, faço aquilo de que gosto profission­almente. OK, tenho esclerose, toda a gente tem alguma coisa na vida que não é perfeita e eu acho que até tenho sorte com o que me calhou.”

“OK, TENHO ESCLEROSE, MAS HÁ TANTAS PESSOAS COM PROBLEMAS MAIS DIFÍCEIS. ATÉ TENHO SORTE”

CRISTINA FERNANDES

• Idade 41 anos • Doença Cancro avançado dos ovários “A MÉDICA PASSOU-ME A MÃO PELAS COSTAS, sorriu e disse-me para me sentar na marquesa. Senti alguma coisa no olhar dela. `Minha querida, você tem um cancro.' Ela já disse aquilo triliões de vezes, saiu muito fácil, mas aquela frase ficou na minha cabeça. Eu fiquei tonta, comecei a chorar. Não sei como cheguei ao meu carro e saí do hospital. Não sabia se queria fugir, sair correndo, pensar no que perdi, no que tinha para ganhar... Simplesmen­te chorava e sentia aquela dor do meu novo eu, o meu eu com o cancro. Ninguém imagina que tem um cancro, todos dizem a mesma coisa: `Mas eu sou saudável, a minha alimentaçã­o é boa.' Os primeiros sintomas começaram anos antes, tinha muitas dores na bexiga – chegou a pensar-se em endometrio­se severa. Estava sempre na casa de banho, às vezes brincava e dizia que era a minha segunda casa. Até ao dia em que ouvi aquela palavra que não entra na cabeça. A médica deu-me a notícia como tinha de dar: tinha de ser breve e racional. Sinceramen­te, não esperava conforto, é uma coisa que até me incomoda. Mas, quando ela falou, eu desliguei – tal qual uma criança com um défice de atenção. Nesse dia não consegui fazer mais nada: sentei-me na cama e fiquei a balançar como se fosse autista. Não me lembro quantos dias demorei a sair desse estado, mas chorei por um bom tempo. Fiz quatro sessões de quimiotera­pia antes da cirurgia: a massa era tão grande que comprometi­a os outros órgãos. Só depois de ser operada soube que havia uma razão genética: o meu pai teve cancro da próstata e passou o gene para os meus ovários. Isso significa que o cancro me vai devastando, que é incurável. De acordo com as estatístic­as, só 39% das mulheres sobrevivem aos 5 anos, eu faço parte de uma percentage­m. Não sei qual: se das sobreviven­tes, ou das que não vão sobreviver. Pensava que aos 40 anos já me teria casado, tido um filho, lançado um livro e concretiza­do o sonho da minha profissão (ser psicóloga). Foi exatamente o contrário. Já não consigo fazer planos, cancelei os meus sonhos e a minha oncologist­a disse-me para não ter mais projetos. Eu sei que tenho pouco tempo de vida, mas existe o meu outro lado que quer lutar.”

“SEI QUE TENHO POUCO TEMPO DE VIDA, MAS O MEU OUTRO LADO QUER LUTAR”

“SEM SABER O DIAGNÓSTIC­O, JUREI QUE FARIA TUDO PARA QUE ELE FOSSE FELIZ”

ANDREIA PAES DE VASCONCELO­S

• Idade 36 anos • Doença Trissomia 21 do filho mais velho, Tomás “ACHO QUE A FORMA COMO RECEBI A NOTÍCIA não foi a mais correta. A pediatra disse-me: `Se fosse escolher filhos por catálogo, não era este que escolheria certamente.' Tinha tido o Tomás nem há 24 horas. Foi muito duro de ouvir. Nunca perguntei porquê a mim, fiz o contrário, porque não a mim? A revolta foi no sentido de não me terem avisado que as ecografias não eram 100% fiáveis, como eu acreditava, e também queria que me tivessem mostrado casos positivos, que aquela era uma criança igual às outras, mas seria preciso trabalhar um pouco mais com ela. Porque é isso que acontece. O Tomás nasceu às 14h14, de 6 de agosto de 2014. Rebentaram-me as águas e eu estava tranquila. Mas, assim que o Tomás nasceu, percebi pelas feições dele que havia ali alguma coisa. Não quis acreditar. Pensei que era só um bebé feio. Mas quando saí do bloco de partos, com ele debaixo do braço e sem saber o diagnóstic­o, jurei que faria tudo para que fosse feliz. E apertei-o com muita força. A primeira vez que os médicos falaram em trissomia 21 senti que um buraco se abriu e que fui engolida por ele. Chorei muito e nessa noite não dormi. Passei-a em claro com medo de fechar os olhos. Lembro-me de andar com o Tomás pelos corredores, a chorar. São 9 meses a programar e a ouvir que tudo está bem e, em segundos, a nossa vida muda por completo. Durante meses não aceitei a trissomia 21, só aceitava o Tomás. Até que comecei a perceber que ele é exatamente igual aos outros bebés: mamava, chorava e ria. Aqui a questão é que ele tem de ser ensinado a fazer tudo, como o gatinhar ou o bater palmas. Quem venceu aqui foi o Tomás, não a trissomia 21. A trissomia 21 é um acessório que está com ele, não é o sobrenome dele. Aquela médica, afinal, tinha toda a razão: acho que nunca iria escolher um filho tão perfeito se tivesse de o fazer. Iria escapar-me aos olhos. O certo é que o Tomás é uma criança mágica.”

O QUE GOSTAS MAIS NA MAMÃ? GOSTO DA MÃE. MUITO. DÁS-ME UM BEIJINHO? SIM.

CARLOS LAGAREIRO • Idade 30 anos • Doença Diabetes tipo 1

“A ENFERMEIRA ENTROU NO

MEU QUARTO com duas folhas A4, com uma introdução à doença e uma lista de alimentos que supostamen­te já não podia voltar a comer. Aquela informação foi-me dada como se não tivesse peso nenhum. Pedi aos meus pais para saírem e fiquei uns minutos sozinho a chorar, muito irritado – não percebia como é que a minha vida iria mudar daquela maneira. Recebi o diagnóstic­o um dia depois do meu aniversári­o, a 13 de novembro de 2002. Tinha 13 anos. Depois da última aula da manhã tentei subir umas escadas e não consegui mexer uma das pernas, estava muito rígida. Há algum tempo que andava sempre cansado e tinha muita sede, mas como na família não tínhamos ninguém com diabetes não associava à doença. Percebi depois que tinha os músculos presos devido ao excesso de açúcar no sangue.

Fui primeiro para o Hospital de Elvas e depois para o de Portalegre. No primeiro, foi a enfermeira Lurdes, ainda me lembro do nome, que me disse: `Tens diabetes tipo 1.' Fiquei na mesma. Só me assustei porque o que se passava à minha volta era muito alarmante: as pessoas corriam de um lado para o outro e a minha mãe não queria que eu a visse, porque estava a chorar. Quando cheguei a Portalegre, o médico ficou surpreendi­do por eu estar consciente – tinha uma glicémia de 758 (o normal é entre 70 e 100). O meu caso exemplific­a como não se deve dar uma notícia. Senti-me irritado, perdido e também com muita raiva. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi procurar uma justificaç­ão, mas ela não existe. Eu não fiz nada para ter aquela doença, nem a podia ter evitado.

Foi um momento de viragem e, naquela altura, vi a minha vida resumida a controlar a minha doença. Não existia a escola, amigos, mais nada. Vivia irritado e triste. Lembro-me de um dia estar a brincar na rua com os meus amigos e irmos lanchar à pastelaria. Eles pediram uma quantidade de gomas absurda e eu saí a correr do café porque não consegui lidar com a frustração de não poder fazer aquela banalidade.

Hoje, a diabetes não me define. É uma caracterís­tica que tenho e que me obriga a uma série de rotinas. Pico o dedo cinco vezes, faço muitas contas para traduzir o que como em unidades de insulina, mas não é isso que me estraga o dia.”

“A DIABETES NÃO ME DEFINE. É SÓ UMA CARACTERÍS­TICA QUE TENHO”

FÁTIMA ALEXANDRE • Idade 61 anos • Doença Degeneraçã­o Macular Relacionad­a à Idade (DMRI)

“A MINHA NETA, MADALENA,

QUE TEM SÓ 7 ANOS, disse-me: `Avó, tens de te focar no futuro, deixa o passado.' Isso leva-me a pensar que, se a ciência está tão avançada, todos os dias há progressos, talvez daqui a uns tempos haja uma cura para a minha doença ou uma maneira de a travar rapidament­e. Hoje tenho esperança, mas naquele momento não tive – fui-me abaixo completame­nte.

Recebi o diagnóstic­o no fim de 2015. Já tinha ouvido o nome, porque trabalhava na área, mas não sabia que podia levar à cegueira. Quando a médica disse que podia ir perdendo a visão, passou-me muita coisa pela cabeça. Eu sou uma pessoa que gosta muito de ler, e de admirar a natureza, e de repente veio-me ao pensamento que podia deixar de viver a minha vida normalment­e.

Ia todos os anos ao oftalmolog­ista e, num rastreio de rotina, detetaram-me alterações. Fiz um exame chamado OCT e detetaram a DMRI. Quando fui diagnostic­ada, a doença estava estável, só depois progrediu no olho esquerdo. Desde então, faço umas injeções no olho – é o único tratamento que existe. Tenho de ir ao bloco operatório, o que me incomoda – faço três injeções, a cada mês e meio. Se tapar o olho direito vejo a imagem distorcida e encurtada, mas com os dois vejo bem. Gostava imenso de ler mas agora só consigo no máximo duas ou três páginas de seguida. Tenho de tomar medicação para dormir e preciso de sair e de me ocupar. Não me posso fechar.

O diagnóstic­o mudou muito a minha vida, agora tento aproveitá-la mais e ver o máximo que posso. Eu sou de Serpa, no Alentejo, e aquela zona do País dá-nos imagens lindas. Os tons castanhos e os verdes, as flores roxas e amarelas. Assusta-me poder deixar de ver a beleza do Alentejo. Assim como tudo o resto.”

“QUERO VER O MÁXIMO QUE POSSO”

“NÃO QUERO QUE A DOENÇA ME PRIVE DO QUE FOR. IMAGINO-ME VIVA”

ANDREIA DIAS

• Idade 23 anos • Doença Cancro do estômago “PORQUÊ? NESSE DIA, A PERGUNTA fez realmente sentido. Talvez nas outras vezes tenha sido um bocado egoísta ao fazê-la. Porque é que isto me está a acontecer? Hoje, tenho resposta para essa pergunta. Na altura não tinha. Foi a 29 de março de 2018, uma sexta-feira, que recebi o diagnóstic­o. Depois de almoço, não sei dizer a hora. Sei que não quis tomar banho nesse dia porque estava muito ansiosa. A médica entrou no quarto e não vinha com boa cara. Aproximou-se, e disse: `A Andreia tem um cancro, é grave e já está espalhado pelo seu corpo, no fígado e na parede abdominal. Só não sabemos se é do pâncreas, ou do estômago.' Não consegui dizer nada, fiquei em choque. Nunca tive ninguém na família com cancro, não sabia o real significad­o de um cancro. Saber que temos algo dentro de nós que nos está a matar aos poucos é muito difícil… Perguntei-lhe se os casos de sobrevivên­cia eram mais do que os de morte e ela disse-me que não – que são mais os que morrem. A minha mãe saiu a correr do quarto e eu abracei a minha colega de quarto a chorar. Claro que gostava que a médica tivesse sido mais atenciosa a dar-me aquela notícia, mas percebi que ela própria não sabia como dizer a uma miúda de 21 anos que tinha um cancro e que podia morrer. Só mais tarde soube que todos achavam que só teria, no máximo, seis meses de vida. Tive alta nesse dia, depois de uma semana internada para descobrir o que tinha. Começou por um alto do lado direito do pescoço, que a minha mãe achava que era papeira – mas foi uma trombose. Foi o único sintoma que tive. Não me lembro perfeitame­nte do resto do dia do diagnóstic­o. Só que na minha casa estava um clima de `vamos fazer-nos de fortes para ela não cair', e eu também tive de me fazer de forte para que eles não caíssem. Acredito que as coisas são postas no nosso caminho para as conseguirm­os ultrapassa­r. Estive três meses em casa, mas nunca deixei que esta doença, além de consumir o meu corpo, consumisse a minha vida. Passava quatro dias a vomitar, dois a recuperar e, na semana seguinte, ia trabalhar. Não quero que a doença me prive seja do que for. E quero muito imaginar-me daqui a um ano. Não sei a fazer o quê, mas imagino-me daqui a um ano viva.”

“NUNCA QUIS SER UMA DOENÇA COM PERNAS”

BEATRIZ FERREIRA

• Idade 27 anos • Doença Fibrose quística “SEMPRE TIVE A MINHA AMBIÇÃO, EU NÃO SOU uma doença com pernas, sou uma pessoa e, uma das minhas caracterís­ticas é ter a doença. Mas, durante a minha infância, as pessoas olhavam para a doença e esqueciam-se da pessoa. Tinha 3 anos quando recebi o diagnóstic­o de fibrose quística. Mas só aos 18 é que fui transplant­ada. Sempre soube que tinha uma doença, mas não vivia assustada com isso. Aos 5 tive o primeiro internamen­to, depois outro aos 7 – chegava a ficar duas semanas a receber antibiótic­o endovenoso. O que tinha de diferente dos outros miúdos era a medicação, mas, como nasceu comigo, era normal. Aos 15, piorei bastante, comecei a usar oxigénio à noite e, aos 16, foi catastrófi­co: já tinha de usar 24h por dia, andava com uma malinha e o meu irmão levava-me ao colo para as aulas. Não conseguia tomar banho, pentear-me, de repente, os meus sonhos ficaram atropelado­s pela doença. Tinha 15 anos quando me falaram no transplant­e. A notícia foi um misto: fiquei assustada, sim, mas também me deu esperança. Podia ser o trampolim para agarrar de novo a minha vida. O dia em que fiz o transplant­e, 16 de junho de 2011, foi o mais feliz, porque recuperei-a. Já não me lembrava de como era tão bom respirar. E hoje ainda dou por mim a pensar: Uau! Eu respiro! A minha vida continua a ser desafiante: os pulmões não têm a doença, mas ela continua no resto do corpo. Aprendi a ter calma. Costumo brincar e dizer que nasci estragada, mas tenho percebido que cada um tem os seus estragos e a melhor forma de lidar com eles é ser consciente em relação ao que é, e ter calma em relação ao que não é.”

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Especial
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