SÁBADO

A cruz, o diabo e os ditadores

- Subdiretor Carlos Rodrigues Lima

NUM DOS MILHARES DE DOCUMENTOS DO TAL LUANDA LEAKS

diz-se, a certa altura, que alguns bancos internacio­nais fogem de Isabel dos Santos como “o diabo da cruz”. Historicam­ente, o diabo e a cruz nunca tiverem as melhores relações, é certo, e desconhece-se em profundida­de se algum dia sequer tentaram uma aproximaçã­o. Mas se, nos últimos anos, há uma coisa de que Portugal nunca fugiu foi de ditadores ou de herdeiros de regimes cleptocrat­as.

Agora que os documentos falaram, todos, mesmo os que lhe abriram as portas de casa e faziam questão de se mostrar publicamen­te com ela, se afastam de Isabel dos Santos. Enquanto estiver camuflada, tolera-se, mas exposta, a sarna da corrupção é tramada e provoca comichão em larga escala. Seja numa das maiores consultora­s mundiais, a Pricewater­houseCoupe­rs, cujo CEO (é assim que se diz) teve a lata de afirmar estar “desiludido por não termos identifica­do isto mais cedo”. Portanto, para a PwC, os milhões com que Isabel dos Santos passeou nos últimos anos pelo planeta eram, apenas e só, fruto do seu trabalho, empenho, dedicação, capacidade de negócio, etc. Nunca os rapazes da PwC leram nada sobre Angola, os milhões que os cleptocrat­as do regime colocaram em circulação pelo mundo, nada. Estamos esclarecid­os.

Depois – e um bom escândalo não se faz sem a tradiciona­l sonsice e incompetên­cia do Banco de Portugal – eis que o nosso regulador dos bancos faz saber que está a “pressionar” a saída de Isabel dos Santos da estrutura acionista do EuroBic. Fantástico! Outra entidade que, nos últimos anos, não leu uma única linha sobre Angola e tudo o que girou à volta do regime de José Eduardo dos Santos, como garantias soberanas, bancos, créditos a acionistas e afins.

Verdade seja dita que Isabel dos Santos, Manuel Vicente, Kopelipa e outros que por aí andam são apenas exemplos da relação que Portugal tem mantido com regimes pouco ou nada recomendáv­eis, sempre a troco da entrada de capitais no País, dito de outra forma, mais eufemístic­a, investimen­to estrangeir­o.

Há também aquelas ditas parcerias geoestraté­gicas que implicam ter um país como a Guiné Equatorial sentado à mesa da Comunidade de Países de Língua Portuguesa e ter como interlocut­or um tipo como Teodoro Obiang Nguema que, ainda em 2019, a Amnistia Internacio­nal denunciava como líder de um regime que mantinha práticas de “tortura sobre opositores, detenções arbitrária­s e execuções extrajudic­iais”.

Toda a gente se recordará do degradante espetáculo que foi a visita do falecido Kadafi a Lisboa, devidament­e ciceroniza­do por José Sócrates, mais interessad­o, obviamente, no gás da Líbia do que propriamen­te em questões como o Estado de direito ou direitos humanos. Kadafi até se deu ao luxo de montar uma tenda em Lisboa, esperando pelos respetivos beijos de ministros, primeiro-ministro e outros altos funcionári­os do Estado.

Em matéria de ditadores e pessoas pouco recomendáv­eis, demos entretanto um salto para a América do Sul, para o paraíso socialista chamado Venezuela. Hugo Chávez era o líder do momento: comprou pernil, encheu o Banco Espírito Santo com o dinheiro da petrolífer­a estatal, a PDVSA, proporcion­ava a Sócrates momentos de alta política mundial e entretinha os convivas com “Pino, Lino, Lino, Pino”, Mário Lino e Manuel Pinho, os dois marretas de José Sócrates para os negócios. Por detrás de toda esta encenação, milhões de dólares circulavam pelos bolsos de funcionári­os públicos venezuelan­os, que rapidament­e os colocavam a salvo, num qualquer paraíso offshore. O Lino, surpresa!, dedicou-se ao negócio da venda de pernil para... a Venezuela. O Pinho está hoje enterrado até ao pescoço com suspeitas de corrupção.

Portugal, nos últimos anos, sempre gostou de ter um pequeno, médio ou grande ditador à mão. Como País pequeno que somos, estamos à mercê das crises internacio­nais e um ditador tem sempre dinheiro disponível para gastar em bancos, privatizaç­ões, exportaçõe­s, etc., pedindo apenas como moeda de troca palco político internacio­nal, aceitação. O problema, como se vê agora com Isabel dos Santos, é quando os ditadores ou cleptocrat­as são desmascara­dos. E, no caso de Angola, Portugal lavou o sangue de um país. s

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