A cruz, o diabo e os ditadores
NUM DOS MILHARES DE DOCUMENTOS DO TAL LUANDA LEAKS
diz-se, a certa altura, que alguns bancos internacionais fogem de Isabel dos Santos como “o diabo da cruz”. Historicamente, o diabo e a cruz nunca tiverem as melhores relações, é certo, e desconhece-se em profundidade se algum dia sequer tentaram uma aproximação. Mas se, nos últimos anos, há uma coisa de que Portugal nunca fugiu foi de ditadores ou de herdeiros de regimes cleptocratas.
Agora que os documentos falaram, todos, mesmo os que lhe abriram as portas de casa e faziam questão de se mostrar publicamente com ela, se afastam de Isabel dos Santos. Enquanto estiver camuflada, tolera-se, mas exposta, a sarna da corrupção é tramada e provoca comichão em larga escala. Seja numa das maiores consultoras mundiais, a PricewaterhouseCoupers, cujo CEO (é assim que se diz) teve a lata de afirmar estar “desiludido por não termos identificado isto mais cedo”. Portanto, para a PwC, os milhões com que Isabel dos Santos passeou nos últimos anos pelo planeta eram, apenas e só, fruto do seu trabalho, empenho, dedicação, capacidade de negócio, etc. Nunca os rapazes da PwC leram nada sobre Angola, os milhões que os cleptocratas do regime colocaram em circulação pelo mundo, nada. Estamos esclarecidos.
Depois – e um bom escândalo não se faz sem a tradicional sonsice e incompetência do Banco de Portugal – eis que o nosso regulador dos bancos faz saber que está a “pressionar” a saída de Isabel dos Santos da estrutura acionista do EuroBic. Fantástico! Outra entidade que, nos últimos anos, não leu uma única linha sobre Angola e tudo o que girou à volta do regime de José Eduardo dos Santos, como garantias soberanas, bancos, créditos a acionistas e afins.
Verdade seja dita que Isabel dos Santos, Manuel Vicente, Kopelipa e outros que por aí andam são apenas exemplos da relação que Portugal tem mantido com regimes pouco ou nada recomendáveis, sempre a troco da entrada de capitais no País, dito de outra forma, mais eufemística, investimento estrangeiro.
Há também aquelas ditas parcerias geoestratégicas que implicam ter um país como a Guiné Equatorial sentado à mesa da Comunidade de Países de Língua Portuguesa e ter como interlocutor um tipo como Teodoro Obiang Nguema que, ainda em 2019, a Amnistia Internacional denunciava como líder de um regime que mantinha práticas de “tortura sobre opositores, detenções arbitrárias e execuções extrajudiciais”.
Toda a gente se recordará do degradante espetáculo que foi a visita do falecido Kadafi a Lisboa, devidamente ciceronizado por José Sócrates, mais interessado, obviamente, no gás da Líbia do que propriamente em questões como o Estado de direito ou direitos humanos. Kadafi até se deu ao luxo de montar uma tenda em Lisboa, esperando pelos respetivos beijos de ministros, primeiro-ministro e outros altos funcionários do Estado.
Em matéria de ditadores e pessoas pouco recomendáveis, demos entretanto um salto para a América do Sul, para o paraíso socialista chamado Venezuela. Hugo Chávez era o líder do momento: comprou pernil, encheu o Banco Espírito Santo com o dinheiro da petrolífera estatal, a PDVSA, proporcionava a Sócrates momentos de alta política mundial e entretinha os convivas com “Pino, Lino, Lino, Pino”, Mário Lino e Manuel Pinho, os dois marretas de José Sócrates para os negócios. Por detrás de toda esta encenação, milhões de dólares circulavam pelos bolsos de funcionários públicos venezuelanos, que rapidamente os colocavam a salvo, num qualquer paraíso offshore. O Lino, surpresa!, dedicou-se ao negócio da venda de pernil para... a Venezuela. O Pinho está hoje enterrado até ao pescoço com suspeitas de corrupção.
Portugal, nos últimos anos, sempre gostou de ter um pequeno, médio ou grande ditador à mão. Como País pequeno que somos, estamos à mercê das crises internacionais e um ditador tem sempre dinheiro disponível para gastar em bancos, privatizações, exportações, etc., pedindo apenas como moeda de troca palco político internacional, aceitação. O problema, como se vê agora com Isabel dos Santos, é quando os ditadores ou cleptocratas são desmascarados. E, no caso de Angola, Portugal lavou o sangue de um país. s