As rotinas nos hotéis
“Ouvi dizer que no Estoril Sol até sardinhas quiseram assar nas varandas dos quartos”
Venâncio Tavares, 71 anos, chegou ao Palácio Estoril às 12h30 com a mulher, cinco filhos, entre os 2 e os 7 anos, e o pai. Pela duração da viagem – mais de quatro horas – nunca pensou que ia ficar alojado a apenas 30 quilómetros do aeroporto. “O motorista deu imensas voltas, passou pela Buraca, parou em cafés para comer... Mais tarde percebi que estava escalado para ir para o Algarve e não queria, por isso andou ali a fazer tempo connosco, com os miúdos
“CORREMOS MAIS DE SETE OU OITO HOTÉIS E ESTAVAM TODOS CHEIOS. A ÚNICA ALTERNATIVA FOI O RITZ”
cheios de fome e a chorar no autocarro.” A chegada ao imponente hotel, onde Ian Fleming se inspirou para criar o famoso 007, foi mais pacífica. “Lembro-me que a D. Rosa Maria, que trabalhava na receção, mandou alguém ir à farmácia comprar um medicamento para a dor de ouvidos de uma das minhas filhas. Eu não tinha dinheiro, cheguei a Portugal com uma moeda de cinco escudos (o equivalente a 71 cêntimos) da Ponte de Salazar. Só me deixaram transferir 15 contos (hoje, seriam cerca de 2.134 euros) – cinco por adulto, as crianças não tinham direito a comer – que levantei no dia seguinte.” Ainda na receção, Venâncio, que antes de vir para Portugal trabalhava na representação da BMW em Angola, recebeu mais cento e poucos escudos. “Foi uma neta do Fausto Figueiredo [o empresário que fez do Estoril uma estância de veraneio] que nos deu o dinheiro. Custou-me tanto, receber aquele dinheiro de uma miúda.” O Palácio Estoril foi um dos hotéis que não colocou restrições ao número de retornados. “Muitas vezes teremos tido cerca de 400 pessoas, quando a capacidade era para menos de 300. Era vulgar uma suíte alojar quatro, cinco ou seis pessoas”, lembra à SÁBADO Manuel Ai Quintas, que dirigiu o hotel entre 1969 e 2003. Nessa altura, “a arrumação dos quartos passou a fazer-se com mais dificuldade – os novos hóspedes saíam menos – e as refeições também exigiam outra organização”, conta José Diogo Vieira, 69 anos, na altura ajudante de porteiro, hoje subchefe da mesma secção. “Pusemos mais mesas e os empregados trabalhavam mais horas, mas mesmo assim não era possível servir toda a gente ao mesmo tempo, nem cabiam todos no restaurante. Havia, entre os retornados, umas pessoas que tratavam de organizar turnos, para não haver tantas filas. Uns iam às 7h30, outros às 9h e às 10h. Ao almoço e jantar era igual”, acrescenta Mário Pereira, head concierge do hotel. “Também deixámos de ter restaurante à la carte, havia uma refeição única, o menu para aquele dia”, acrescenta Manuel Ai Quintas. “Se o
AS REFEIÇÕES PASSARAM A SER POR TURNOS E PASSOU A HAVER CRIANÇAS A DANÇAR E A CORRER NOS SALÕES
almoço era carne, o jantar era peixe”, recorda José Diogo. “O meu pai chamava-lhe peixe-burro”, brinca Venâncio, “porque era sempre o mesmo estilo de peixe”.
No geral, as relações entre funcionários e hóspedes eram boas, admite Venâncio, que ainda hoje tem, na sua oficina, vários clientes dos tempos em que viveu no hotel. “A governanta dava roupa à minha mulher, havia empregados que compravam chocolates, bolos e rebuçados para dar aos miúdos e a dona Arminda e o senhor Alfredo, funcionários da cozinha, chegaram a levar os meus filhos para jantar em casa deles. Tinham sempre bolos.” Para os funcionários, o choque foi grande, admite Mário Pereira. “Quando comecei a vê-los entrar por aqui adentro só não chorei porque não sei chorar. Não estávamos preparados para ter famílias inteiras. ” Mário, hoje com 73 anos, lembra-se de haver crianças a descer pelos corrimões do hotel e a dançar em cima dos sofás, corações e palavras de amor escritas nas mobílias e nas paredes e fumo, muito fumo (os salões tinham, então, 120 cinzeiros). “Às vezes até lhes dizia: estão aqui todos no salão, porque é que não vão para a piscina?”, recorda José Diogo. “Alguns nunca tinham estado num hotel. Chegaram a assar sardinhas nos bidés, que estalavam e partiam”, conta Venâncio Tavares.
Um dia, quando lhe disseram que o quarto andar estava cheio de fumo, Mário Pereira decidiu percorrer a sanca que ainda hoje rodeia todo o piso. “Comecei a andar, encostadinho às paredes, até que percebi qual era o quarto. Quando entrei estava um indivíduo a queimar revistas e trapos no chão de mármore da casa de banho de um dos melhores quartos do hotel, virado para a piscina. O IARN veio buscá-lo, mas acho que houve casos piores: ouvi dizer que no Estoril Sol até sardinhas quiseram assar nas varandas dos quartos.” Já nessa altura o chefe da portaria era o “mão de ferro” dos novos hóspedes, como lhe disse um deles. “Quando eu entrava ficava tudo quietinho e sossegadinho, já sabiam o meu horário e tudo. Dizia-lhes muitas vezes que estavam num hotel de luxo. Mas também percebia o lado deles: quem é que
aguenta ser certinho tanto tempo sem uma situação definida?”