SÁBADO

OS PRIMEIROS DIAS DE FACULDADE

- ÂNGELA MARQUES

Bemvistasa­scoisas,eu era uma inocente. O tanto que eu queria viver em Lisboa era o tanto que eu não sabia o que era viver em Lisboa. Eu tinha 17 anos, uma mala que não sendo de cartão era pesada e leve ao mesmo tempo e queria desempenar a minha vida, tirar-lhe cadeados e vê-la crescer. Então, apanhava autocarros. Numa daquelas primeiras noites em que a Feira Popular era a praça de restauraçã­o preferida dos caloiros e a noite era como nós, criança, deixei-me ficar até tarde. Era tarde quando me vi na paragem, cansada de tão feliz – uma madrugador­a ao contrário –, mas ainda era cedo para sentir aquela paragem como casa, esta cidade como morada, a minha vida como festa. Aprenderia logo que esperar por um autocarro em Lisboa é fácil – mas só se não tivermos pressa. Eu não tinha pressa porque ainda tinha todo o tempo do mundo e o tempo cura tudo, até a embriaguez. Foi quando o vi chegar, manso mas conciso: um autocarro que na fronte me dava Bons Dias. Achei bonito, ternurento. Lembro-me que pensei: “Estamos quase no Natal.” Vejamos: eu era uma inocente. Tão inocente que achei que, chegado o fim do ano, aquele autocarro me darias Boas Festas. E eu era uma aluna deslocada – tão deslocada que não sabia APRENDERIA LOGO QUE ESPERAR POR UM AUTOCARRO EM LISBOA É FÁCIL – MAS SÓ SE NÃO TIVERMOS PRESSA. EU NÃO TINHA que a Grande Lisboa tinha um pequeno bairro chamado Bons Dias. Deslocada, perceberia mais à frente que o pouco que isso parece dizer é, na verdade, imenso. Esta semana, vi pais e filhos rondarem o meu prédio à procura de quartos e lembrei-me desses dias. A novidade era o máximo, as descoberta­s o mínimo. Na faculdade e nas ruas, ninguém perderia tempo a explicar aos que vinham de fora que as coisas aqui pareciam diferentes, mas que, ao fim de algum tempo, todos seríamos iguais. Ninguém me diria, de resto, que o mais importante restaria: não me esqueci do autocarro que achei que me dava os Bons Dias para me fazer sentir em casa. Só que agora, quando o vejo, rio de mim. É que já não sou tão inocente e a culpa disso é desta cidade que hoje traz em todos os autocarros a minha morada.

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