JOÃO PEDRO GEORGE
A ideia de que as nossas acções racionais têm, muitas vezes, efeitos não desejados ou mesmo opostos aos objectivos inicialmente pretendidos é um tema antigo, que encontramos em variadíssimos autores, desde Vico, Bossuet, Mandeville, Adam Smith, Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx ou Max Weber, até outros mais recentes, como Robert K. Merton ou Raymond Boudon. Um exemplo clássico é o do surgimento do capitalismo como consequência imprevista e não intencional da ética protestante: o paradoxo do ascetismo racional dos calvinistas consistiu em ter criado e acumulado a riqueza que se rejeitava. Lembrei-me da tese de Max Weber, desenvolvida em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, quando vi a campanha da Nike protagonizada por Colin Kaepernick, o quarterback da National Football League (NFL) que, antes do início dos jogos, em protesto contra a desigualdade racial, se mantinha sentado ou ajoelhado na lateral do campo durante o hino nacional norte-americano. O lema do anúncio, criado para assinalar os 30 anos do famoso Just do It, aparece expresso nas duas frases que legendam a imagem de Kaepernick: Believe in Something. Even if it means sacrificing everything. Alguns apoiantes de Trump, desagradados com a mensagem, apelaram ao boicote à marca e filmaram os seus próprios artigos da Nike a arder entre chamas.
Se essas pessoas conhecessem o funcionamento do capitalismo teriam percebido que o protesto levado a cabo por Kaepernick não representa uma verdadeira ameaça ao sistema, pela simples razão de que aquele tipo de contestação e de revolta é o próprio sistema. Em The Rebel Sell (a rebeldia vende), Joseph Heath e Andrew Potter mostram que o discurso típico da contracultura é um dos caminhos mais curtos e mais rápidos para fazer negócio, ganhar muitíssimo dinheiro e promover a acomodação social. As páginas da história da publicidade dão-nos abundantes provas de que a rebeldia cultural tem sido um dos principais motores do capitalismo, do consumismo e até mesmo do conformismo ou conservadorismo. Durante a década de 60, os publicitários identificaram as potencialidades comerciais dos acessórios que os hippies tinham escolhido para simbolizar a sua rejeição do sistema, como as sandálias, o emblema de Paz e Amor (criado em 1958 para uma campanha de desarmamento) ou os automóveis pequenos e baratos. Marcas como a Birkenstock ou a Volkswagen, por exemplo, fizeram milhões de dólares graças a campanhas publicitárias com mensagens que iam ao encontro dos valores contestatários do movimento hippie. Pouco depois de o carocha ter sido amplamente adoptado como o carro dos hippies, a Volkswagen invadiu o mercado norte-americano de anúncios com esta pergunta: “Queres demonstrar aos outros que não fazes parte do sistema? Compra o nosso automóvel.”
O mesmo fenómeno ocorreu com a cultura punk na década seguinte: tanto a Doc Martens como a Blundstone perceberam que podiam multiplicar as suas vendas desenvolvendo modelos de calçado que mimetizassem o estilo ou a estética das botas militares usadas subversivamente pelos punks. Ou, na década de 80, com o mundo da informática. Para aumentar as vendas do Macintosh e contrariar o domínio da IBM e da Microsoft, que tinham conseguido impor no mercado um padrão uniforme de computador, a Apple lançou o famoso anúncio 1984, onde se sugeria que a IBM e o Microsoft eram as marcas escolhidas pelos indivíduos conformistas e pelas víti-
do pensamento único. O filme publicitário mostrava um ecrã gigante, em frente de uma multidão de trabalhadores alinhados em filas geométricas, com a imagem do Big Brother divulgando o seguinte comunicado: “Hoje celebramos o primeiro glorioso aniversário da Lei de Purificação da Informação. Criámos, pela primeira vez na História, um jardim de ideologia pura, onde cada trabalhador poderá desenvolver-se livre da praga das confusas e contraditórias verdades. A Nossa Unificação do Pensamento é uma arma mais poderosa que qualquer tropa ou exército terrestre. Somos um único povo, com uma única vontade, uma única resolução e uma única causa. Os nossos inimigos morrerão de excesso de verborreia e nós vamos enterrá-los, submergindo-os na sua confusão. Venceremos!”
O filme era a preto e branco, excepto na imagem da mulher loira a correr com um vestido vermelho berrante, perseguida pela polícia de choque. No fim, a mulher dá um grito e lança um enorme martelo na direcção do ecrã, que explode e dá origem a um enorme clarão de luz. Numa das partes laterais do ecrã começa então a aparecer um texto informativo sobre as vantagens de comprar o novo computador Macintosh. A mais importante das quais era: graças à Apple Computer Corporation, o ano 1984 seria muito diferente do 1984 (o livro de George Orwell publicado em 1949). O anúncio, realizado por Ridley Scott, recebeu o prémio Advertising Age para o melhor anúncio da década.
A própria Nike já se tinha apropriado do discurso da contracultura quando, em 1994, contratou o escritor beat William Burroughs (conhecido pelos livros e por ter matado a mulher e ser viciado em todo o tipo de drogas, em particular heroína) e utilizou a canção Revolution, dos Beatles, para promover os ténis Air Max (um ano antes, a Gap tinha escomas lhido também a imagem de um outro elemento da Beat Generation, Jack Kerouac, numa campanha publicitária cujo mote era “Kerouac Wore Khakis”, ou seja, Kerouac vestia kaki). Estas e outras empresas, como a Vans, geram centenas de milhões de dólares ao ano vendendo os conceitos de “alternativo” e de “subversivo”. Uma parte significativa das pessoas compra coisas que lhes permitam diferenciar-se dos outros, para se sentirem melhores, superiores, mais inteligentes, mais actualizados, mais informados, mais competentes a estabelecer a distinção entre o que é bom e o que é mau, com mais bom gosto, com os valores éticos certos (o comércio justo ou o marketing ético da Body Shop, da Starbucks, etc., desempenham, em parte, essa função) ou simplesmente para exibirem que têm mais dinheiro do que a maioria (comprar uma mala Chanel, Louis Vuitton ou Hermès, por exemplo, serve também esse propósito).
Todos os meses, o mercado lança produtos que criticam o conformismo, o consumismo e o capitalismo (lembram-se de filmes como Beleza
Americana, de Sam Mendes, e de livros como No Logo, da canadiana Naomi Klein?). Porém, o sistema não só sobrevive como parece consolidar-se e fortalecer-se à custa de todos esses ataques. Na sua ilimitada voracidade, o capitalismo perpetua-se assimilando as contradições, parasitando a dissensão, normalizando e neutralizando a transgressão. O sistema não se sente afectado por actos de rebeldia como os de Colin Kaepernick, porque a rebeldia e a dissidência, em sociedades altamente individualizadas e competitivas, são valores intrínsecos à própria ideia de concorrência num mercado livre, têm uma importância simbólica, retórica e discursiva positiva. Por isso são financeiramente rentáveis. Que a intenção subversiva de Kaepernick tenha sido transformada num produto consumível e revendida através da publicidade demonstra à saciedade – e de que modo! – que o conformismo, não raro, é uma consequência imprevista ou perversa da contestação e da transgressão. Ah, a rebeldia. Essa imensa fraude.