Simões não conta no ‘mundo das toupeiras’
SE NÃO HOUVER MUITO BENFICA ENTRE O ‘BENFICA A PRETO E BRANCO’ E O BENFICA DOS ‘PROFISSIONAIS DO SUBTERRÂNEO’, O PROBLEMA ENTÃO É GRAVE. MUITO GRAVE
Quando há oito dias escrevia aqui, nestas honradas colunas, que “Os Jotas do Benfica não precisam de Guerras”, estava longe de imaginar a eclosão do ‘caso Simões’ e as proporções que, entretanto, iria gerar. Esse ‘caso’ apenas veio confirmar a acuidade do tema, apesar de se perceber a dificuldade de o debater, ou, se se quiser, elevar o debate em torno de uma matéria que, visível ou disfarçadamente, afecta o Benfica.
O que eu quis dizer – penso que ficou claro – é que o Benfica, na fase mais madura da presidência de Luís Filipe Vieira, com o investimento realizado em torno da equipa de futebol, com boas apostas no quadro técnico-desportivo (todas as regras têm excepções) e com uma gestão financeira de menor risco e deslumbramento, escusava de ter dado ‘carta branca’ a Gonçalves e a Guerra para meterem as unhas e esgravatarem na terra contaminada do futebol, passando a desfrutar do esgoto, vivendo nele e nas suas correntes com o mesmo deleite com que se pode desfrutar das águas límpidas da Sardenha.
Este choque entre António Simões e a‘estruturado Benfica’ resultou na erupção do problema que existe, a jusante, na relação estabelecida entre o futebol e a sociedade, em Portugal. Ademocraciainstalou-se no país mas aindanão se instalouno futebol. Hoje temos um sistema político-partidário variado, temos Governos legitimados sem nenhum tipo de coacção (nem física nem psicológica), temos a oposição a fazer o seu trabalho, quer no Parlamento quer na comunicação social, mas no futebol – a partir do mau exemplo dos grandes clubes – o debate não é consentido e as oposições, tirando o caso radical de autofagia do Sporting, são normalmente dominados ou capturados pelo regime vigente.
António Simões não era apenas a ‘velha glória’, mas o Magriço e a reserva moral do Benfica enquanto esteve colado, até por via familiar, a Luís Filipe Vieira e, em reflexo, da ‘nomenclatura benfiquista’. Era o ‘Eusébio branco’ e a memória mais sólida do ‘Benfica europeu’. A defesa do ‘benfiquismo’ realizada por Simões era tolerada e até aplaudida, enquanto voz identificada com o regime de Vieira e dos seus apaniguados. Quando – em ambiente de múltiplas investigações – Simões começa a perceber que a representação do Benfica, no espaço público, começa a ser dominada pelas marionetas da comunicação encarnada, com Guerra a protagonizar o eixo central dessa estratégia, reforçada com o afastamento (físico) de Carlos Janela, e começa a emitir os principais sinais de incómodo, conclui que o seu estatuto vale pouco ou, mais concretamente, não vale nada.
Simões passouaser o mentiroso e o ex-jogador que, afinal, só ganhou uma Taça dos Campeões Europeus. Até Luisão passou a ser mais importante do que Simões.
Os tempos mudaram muito. Simões era do tempo em que o regime se aproveitava do Benfica e não se importava nada de confundir o Benfica com o regime. Os proveitos, como sempre acontece nestas situações, eram mútuos. O FC Porto não contava, o centralismo dominava por completo e as vitórias conquistadas na Taça dos Campeões Europeus mais o fenómeno do Mundial’66, com Eusébio no cimo da pirâmide, mitigaram o impacto dos ‘Cinco Violinos’ e do ‘cantinho do Morais’, no confronto com o rival ‘de todos os tempos’. A televisão era a preto e branco, era preciso ter paciência para que as válvulas das televisões aquecessem, não havia direcções de comunicação, nem de perto nem de longe, e as ‘estrelas’ eram, de facto, os jogadores.
Simões não conta, no tempo da cor, do ruído e das ‘toupeiras’, que na verdade sempre existiram e era suposto que fizessem o trabalho debaixo da terra e não, de cabeça de fora, à vista de todos. Deixou de ser útil como ‘caixa de ressonância’. Não faz ruído, não tem palco e a memória histórica apaga-se na falta de memória. É facilmente descartável.
Pouco importase são seis milhões ou quatro ou sete; importante considerar é a importância da representatividade do Benfica no tecido social português e, a partir dela, das influências que gera nas instituições e no país.
É nesse contexto que se deve observar o conflito que se gerou entre António Simões e uma certa forma de olhar para o Benfica, porque é isso que, na verdade, está em causa. O cerne da questão não é entre Simões e o Benfica; não é entre uma ‘velha glória’ e a instituição-Benfica; é entre concepções diferentes de ver o Benfica. E, nesse aspecto, a razão nem está toda do lado de Simões nem está toda do lado de Vieira, que entretanto se deixou subjugar pelos ‘profissionais do subterrâneo’.
O Benfica, outravez, aconfundirse como regime. Antes, no Estado Novo, com Salazar, Américo Tomás e Marcelo Caetano. Agora, num tempo dividido pelas atenções geradas entre os compromissos de Sócrates e as geringonças de António Costa.
O problema de António Simões também é de regime, para além de ser de ‘toupeiras anafadas’ (como as da PIDE), sem vergonha no focinho.