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FERREIRA FERNANDES A senhora dos coraçõezin­hos

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Há dias, escrevi uma crónica no Diário de Notícias sobre Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro executada a tiro. Ela, lembrei então (e agora também), era conhecida pela sua corajosa ação política contra a violência nas favelas e a encomenda do crime foi feita provavelme­nte por chefões da droga ou polícias corruptos – as cápsulas eram de um lote de munições da polícia. Na caixa de comentário­s do jornal, uma gentil lisboeta postou um texto mais interessan­te do que a minha crónica. Dizia a senhora: «Jornalismo da treta. Antes de escrever seja o que for averigue, vá ao Brasil e saiba de muita situação escondida por detrás das notícias! E você sabe quem ela era na verdade? Filha de Fernandinh­o Beira-Mar, traficante que patrocinou a campanha dela. Dinheiro do tráfico!»

Aleitora não estava sozinha. No Brasil, nas redes sociais, atiraram-se a Marielle com uma vontade doida de lhe darem uma segunda morte. Disparou uma campanha difamatóri­a sobre a vereadora, inventou-se um ex-marido ligado ao mundo da droga e que a candidatur­a dela fora patrocinad­a pelo Comando Vermelho, conhecida organizaçã­o criminosa. Um dos que fizeram eco foi o deputado Alberto Fraga, da «bancada da bala», como no Brasil se chama aos políticos defensores da liberaliza­ção da compra de armas à americana. Gatilho adequado para insultar uma pessoa que acabara de ser executada com três tiros na cara e um no pescoço. Os boatos foram desmentido­s por sites de checagem de dados.

Outra que disparou rápido foi a juíza desembarga­dora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio. Ela escreveu no Facebook que a vereadora Marielle «estava engajada com bandidos». E repetiu a já famigerada versão da ligação da vereadora com o Comando Vermelho. Pois quando perguntara­m à juíza sobre as fontes e as provas do que dizia, ela respondeu que lera aquilo «no texto de uma amiga» no Facebook. Uma política é assassinad­a

e leva de seguida com uma vaga de factos falsos tão alterosa que atravessa o Atlântico e vem pousar na caixa de comentário­s de um jornal, pela mão de uma gentil lisboeta que no seu Facebook posa envolta por também gentis pequeninos corações vermelhos. Marielle Franco? «Filha de Fernandinh­o Beira-Mar, traficante que patrocinou a campanha dela.»

Aminha lisboeta não mentiu, pelo menos no essencial de que vivem as fake news. O que ela escreveu tinha aquela pontinha de verdade de que se alimenta o boato: Fernandinh­o Beira-Mar é um comprovado traficante de drogas, sim. Mas tem também o facto de ter 12 anos quando Marielle nasceu. Reparem, nem ponho ponto de exclamação quando escrevo este facto, arriscava-me a levar com uma réplica: «E depois? Nunca houve nenhum garoto que tivesse sido pai aos 12 anos?»

Já cá não está quem falou, minha senhora. Fique com a sua, confesso-me impotente para combater uma fake news. Já aprendi que ela não é uma mentira, daquelas boas e à antiga. Essas podiam ser destruídas com a velha forma de ação, o verbo que foi feito para elas: desmentir. A fake news é outra coisa. Não é uma mentira, é outra coisa bem mais poderosa. Do verosímil, a fake news consegue a mesma autoridade de uma verdade. Para os consumidor­es de fake news basta ao que é falso ter a parecença ou uma ligeira ligação com a realidade. Não é Fernandinh­o Beira-Mar natural do Rio de Janeiro, lugar ali tão perto de onde nasceu Marielle Franco, Rio de Janeiro? Ah, pois é...

Muitos dos divulgador­es das fake news não estão conluiados com ninguém nem o fazem por mal. A minha lisboeta tem um sorriso gentil na foto do Facebook com os seus pequeninos corações vermelhos à volta. É-me tão estranho que ela não se comova com o sorriso aberto e luminoso que foi destruído por três balas.

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