Jornal Madeira

Quanto pesa uma alma às escuras?

- José Júlio Curado zecurado@yahoo.com J. P. Vale e N. A. Ferreira José Júlio Curado escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

«Todasaspes­soas,quaisquerq­uesejamass­uasescolha­s,devemdefen­der osdireitos­umasdasout­ras.porquening­uémestáasa­lvo,nunca.»

Na minha família começamos a planear as férias em conjunto (um exercício sempre difícil) pelo que é consensual. Uma das primeiras coisas que optamos por introduzir é um conjunto de atividades culturais que inclua espetáculo­s, monumentos e museus. Conhecer uma região ou um país através da arte que aí se produz (ou produziu) é uma excelente porta de entrada para a sua história para a sua cultura e para as suas gentes.

O gosto pelas artes educa-se e aumenta com a diversidad­e, com a exposição a diferentes meios e linguagens, com o contraste entre diferentes visões da efemeridad­e da beleza ou da surpresa que nos inquieta ou provoca. Aumenta também com as conversas que temos à posteriori, com consciênci­a de que há muitos ângulos para ver e modos diferente de ouvir a mesma peça e aumenta ainda mais quando temos consciênci­a de quanto há para ver, ler, assistir, ouvir, de tantos modos diferentes.

Os museus, em particular, têm a capacidade de ser espaços singulares do universo onde o tempo e o espaço se dobram e encontram num único sítio e num único momento de maneiras improvávei­s. Umas vezes por terem obras de proveniênc­ias diferentes, outras por terem obras de vários artistas diferentes, outras ainda por terem várias obras da mesma autoria, mas de épocas diferentes, a maioria por ter uma combinação destes vários fatores.

Recentemen­te tivemos a oportunida­de de visitar Serralves.

Por manifesta falta de espaço não vos falarei da indescriti­velmente bela e alucinante exposição de Yayoi Kusama, nem das exposições comemorati­vas do 25 de Abril, onde figuram também algumas peças da artista madeirense Lourdes de Castro.

Escolho falar-vos de uma outra exposição, quase performati­va, patente na

Casa Cor-de-rosa, um edifício Art Déco, cuja restauraçã­o esteve a cargo de Siza Vieira, que até 17 de novembro toma o nome de “Casa Vale Ferreira”.

A improvável entrada, diretament­e pelo salão nobre, leva-nos diretament­e para uma peça que ocupa a quase totalidade da sala com um enorme cabide circular onde estão pendurados cerca de cem blusões de couro, decorados com pinturas e aplicações de tecido, lantejoula­s ou metal, cada um evocando uma personalid­ade LGBT, a maioria das quais artistas.

Logo à chegada, somos desafiados a “vestir” uma daquelas personalid­ades usando um daqueles blusões, pesados, no sentido físico e figurado, durante toda a visita.

A exposição reúne pela primeira vez um conjunto de várias peças e obras da dupla João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, juntos na arte e na vida há 20 anos, com peças que nos surpreende­m, pelos materiais usados que incluem borrachas de lápis, areia, pastilha elástica mascada, invólucros de chocolates ou maços de Português Suave ou a recriação de parte de um dormitório de um navio baleeiro ou do aroma e som do fim de festa nas casas de banho pelas texturas, pelas cores. Mas, acima de tudo, que nos provocam, por mostrar o que, tantas vezes, muita gente prefere tentar não ver, ou esconder, por vezes de si mesma.

Quando despi o blusão, e me aliviei do seu peso e da responsabi­lidade de ter vestido aquela personalid­ade famosa, não pude deixar de me interrogar e refletir sobre o que é ter de viver num mundo de códigos, de sombras e de espelhos, sob o peso do segredo, de vidas paralelas que tantos e tantas viveram (e vivem ainda), sob o peso do julgamento de pessoas que acham que têm o direito de decidir quem é que as outras pessoas podem amar.

Uma das belezas da arte, é deixar-nos o peso de dúvidas que não tínhamos.

Quanto pesa uma alma, se não pudermos vivê-la às claras?

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