Jornal Madeira

Domingo para não morrer

- Susana de Figueiredo Jornalista ESCREVE AO DOMINGO, DE 4 EM 4 SEMANAS

Quando eu era criança, ninguém podia morrer aos domingos. Havia em mim - houve sempre - uma estranha angústia de morte, mas o Domingo salvava-me do resto dos dias. A casa amanhecia devagar, um pássaro mudo encostava a cabeça ao vidro da janela e as suas breves asas eram pés pesadíssim­os sobre a terra morna. Do fundo da casa, a voz da mãe. O som das suas mãos benevolent­es afagando as plantas, os olhos deitados ao chão com o céu por cima, cabelos enleados nos dedos e o tropear da voz ao cimo do silêncio. As horas ininterrup­tas de uma manhã de Domingo. A luz de um deus desconheci­do subindo pela infância sem a brisa da tarde. Abalo do mar quarto adentro como um útero aéreo e desabitado. Era impossível morrer-se ali, naquele quase exacto momento em que era Domingo e a casa se iluminava da sombra alta das bétulas.

As crianças arranjam solução até para a morte, para as pequenas mortes de todos os dias, de todos os fios, de todas as horas. Eu não. Era uma criança desprovida de poderes, uma criança ao contrário. Piamente crente na magia pelo avesso; nos escombros de ossos, pedras, flores, monstros. Na evaporação da carne liminar, sempre pronta para uma despedida rápida, vinda de surpresa das traseiras da casa. Erguia-me da cama e corria para os braços da mãe, e a mãe com as ondas do mar batendo-lhe por dentro da pele translúcid­a. Os peixes e outros animais submersos percorrend­o-lhe as veias inteiras, uma a uma, dos pés até à altura dos olhos. Lagos

imensos de uma ternura límpida e primitiva. Os meus olhos, dois corações por abrir. Ainda. Ocaso no desnorte do princípio. Onde?

A mãe desaparece mais depressa do que o vapor da carne. A boca aberta para o mar num atemporal sorriso largo, quase tão imperfeito como as searas de Herberto. Para o bem e para o mal, aprendemos tudo o que importa na infância. De alguma maneira, é ali que o tempo pára, no tempo em que tudo começa a ser fim. Depois, resta-nos a contabilid­ade, uma ordem numérica de verbos aleatórios conjugados à tona do crânio, coisas que vamos aprimorand­o como se vivêssemos. Invenção pouco inocente de feras feridas que os circos já não querem. Pois... não são só as crianças, afinal. Também a gente grande arranja soluções para tudo. Até para a morte. Ou apenas para ela.

Eu queria ocupar-me da vida. Dos domingos impossívei­s onde se salvava gente. A criança sem poderes, arremetida, julgava conseguir domar os maus com a arte final com que domesticav­a a inocência.

Um dia, pus-me à janela e avistei uma árvore muito nítida, de um verde imberbe, quase cruel. Os meus olhos isentos de magia quebraram a vidraça e foram pousar lá fora, enquanto as minhas mãos tocavam a aragem daquela tarde por findar. Uma espécie de prelúdio incauto erguido do desespero. Na verdade, ali estava eu. Olhos e mãos por fora da casa, a caminho da estrada. A estrada rente ao meu corpo nascituro em convulsão, ardendo da espuma de um alce.

Não me recordo se era Domingo.

Para o bem e para o mal, aprendemos tudo o que importa na infância. De alguma maneira, é ali que o tempo pára, no tempo em que tudo começa a ser fim.

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