Um angélico cometa ou monstro?
“Fá-los rir, fá-los chorar, deixa-os com tesão.” Sobre a boca que, na United International Press, dava este carinhoso conselho, havia um feio bigode farfalhudo. O bigode, contra o qual já o poeta Allen Ginsberg e o romancista Jack Kerouac se tinham indignado, escondia o que fora a bela cara de Lucien Carr.
Quem foi Lucien? O angélico cometa a que o mundo deve a “beat generation” ou um monstro? Venham, se faz favor, até 1937. Lucien é um puto de 12 anos, carente de figura paternal, e aparece-lhe, nos escuteiros, ou sei lá eu onde, um instrutor de 26, um homem feito. O miúdo fica fascinado: David Kammerer, assim se chama essa estrela cadente, é um tipo divertido, que enche uma sala de riso, cultíssimo, que fala de poetas franceses, do fulgurante Rimbaud. O miúdo, Lucien, ganha asas, já voa sobre os centrais, a mãe dele, mãe só, encanta-se como só uma mãe só, e deixa-o ir, aos 15 anos, com esse tutor ao México. Quando voltam, talvez Lucien tenha querido soltar-se, mesmo deslargar-se, mas para onde ele vai, outro liceu, outra universidade, Kammerer, com um crístico dom da consubstanciação, lá aparece em figura de gente.
Aos 17 anos, na Universidade de Chicago, Lucien mete a cabeça no forno e abre o gás. Uma tentativa de suicídio? Não, explica ele. Foi, isso sim, a tentativa de criação de uma obra de arte. Uma dúvida: mais na linha de um verso de Rimbaud ou do “ready-made” urinol de Duchamp? Ou a cabeça no forno seria apenas uma forma de encetar uma fuga de assento etéreo a Kammerer?
A mãe, em cuidados, esconde-o em Nova Iorque, na Columbia University. Agora vejam (e ouçam) bem o que uns miúdos que ainda não tinham 20 anos faziam então – Lucien vai pelo corredor do dormitório e a música que vem de um dos quartos exalta-o. Bate à porta: quer saber quem é o gajo que está ouvir um trio de Brahms! A porta abre-se e aparece-lhe a ainda juvenilíssima cara de Allen Ginsberg.
Lucien encanta a universidade. Através de Kammerer, Lucien conhecera William Burroughs. Por uma colega, Edie, vai descobrir Jack Kerouac, o namorado dela. Lou (já lhe podemos chamar assim), Ginsberg, Kerouac, Burroughs e as namoradas de três, que Ginsberg leva à boca os bagos de outra vinha, vão – pelas praias do mar se vão –, à procura de manhãs claras: bebem muito e escrevem como se a literatura, em uivos, estivesse, ali mesmo, a nascer.
E volta Kammerer. Sim, Lou tinha uma pele acariciada por beleza andrógina, um espírito tapete mágico em que qualquer um se queria sentar. Mesmo assim – e diga-me, caro leitor –, rastejaria como um comando pelos corredores do dormitório, alta noite, só para o espreitar a dormir? Não?! Sim, foi o que Kammerer fez, sendo apanhado. Estava cacimbadíssimo.
Eram duas da matina de 13 de Agosto de 1944, os soldadinhos americanos quase a chegar a Paris, à caça de nazis, e Lou e Kerouac tentaram enfiar-se, clandestinos, num barco: queriam ir ver. Foram corridos e separaram-se. Mas Kammerer andava à cata e topou Lou. Tentou mais uma vez seduzi-lo? Terá Lou, como com a cabeça no gás, querido criar nova obra de arte? A verdade é que a sua faca de escuteiro rasgou a carne de Kammerer 12 vezes. Atirou o cadáver ao Hudson e apresentou-se ao juiz, um livro do grande W. B. Yeats, “Uma Visão”, debaixo do braço.
Condenado: dois anos de prisão. A prisão mudou-o. Era a “cola” da “beat generation”, uivou Ginsberg. Continuou amigo deles e conselheiro. Mas, como Rimbaud, despediu a poesia! Emprego certo, mulher e 3 filhos, que tratou, dizem eles, abaixo de cão, como o feio bigode farfalhudo presumia.
Quem foi Lucien? O angélico cometa a que o mundo deve a “beat generation” ou um monstro? Venham, se faz favor, até 1937.