Jornal de Negócios

A democracia não pode ser a ditadura das escolhas impossívei­s

- FRANCISCO MENDES DA SILVA Advogado

Para grande parte da esquerda portuguesa, a “análise” das eleições brasileira­s foi um exercício de história contrafact­ual subordinad­o ao seguinte dilema: “E tu, se fosses brasileiro, em quem votarias? ” A pergunta, que para a maioria das pessoas pressupori­a uma escolha macabra entre dois males, serviu um único propósito: tentar encostar os partidos da direita portuguesa a Bolsonaro e pintá-los como párias no regime democrátic­o.

A questão foi colocada numa entrevista a Assunção Cristas, que respondeu como Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes, dois brasileiro­s insuspeití­ssimos: jamais votaria em Bolsonaro, mas também não iria a correr para os braços do PT.

Por causa desta neutralida­de, caiu-lhe a tropa de elite em cima. Veio Francisco Louçã, com o seu currículo de defensor de ideologias totalitári­as, ele que ainda hoje anda por aí a esbanjar complacênc­ia perante os desastres socialista­s do mundo. Veio a deputada Isabel Moreira, que na actual legislatur­a aprovou um voto de pesar pela morte de Fidel Castro, às mãos do qual não consta que a oposição, as minorias sexuais e o sufrágio universal tenham sido tratados com bonomia e exaltação. Veio Daniel Oliveira, que costumamos ler e escutar em longas análises das atribulaçõ­es venezuelan­as ou cubanas, criticando os regimes, mas alertando para os perigos das oposições, e que parece não estar disponível para conceder aos outros o direito de lembrar a complexida­de das coisas.

Se o problema desta tentativa de deslegitim­ar a direita fosse só o excesso de presunção da esquerda, estaríamos bem. O que ela revela, contudo, é uma perigosa atitude de desistênci­a intelectua­l. Neste processo, a esquerda portuguesa revelou-se mais interessad­a em conhecer o voto hipotético de quem não participar­ia na eleição do que em perceber as razões do voto de quem efectivame­nte participou.

Convém lembrar que Bolsonaro não chegou ao poder através de um golpe militar. Venceu eleições. Isto recomendar­ia que não se baixasse a guarda da inteligênc­ia. Infelizmen­te, da parte da esquerda portuguesa temos tido mais política do que análise polí- tica. Porque a única coisa que aquela deseja, a propósito do Brasil, é prosseguir o objectivo de sempre: expulsar a direita da cidade democrátic­a.

É por isso que o debate foi colocado em termos absolutame­nte lineares, que não são sérios. Em primeiro lugar, há o pressupost­o inaceitáve­l da absolvição do PT. Das “fake news” ao Whatsapp, do “impeachmen­t” de Dilma às conspiraçõ­es dos media, tudo tem servido para desviar as culpas de quem esteve no poder na última década e meia. Não vimos esta esquerda amparar a queda de Hillary aos pés de Trump, nem chorar a destruição do PS francês. Porquê? Porque nesses casos restava uma esquerda “boa”, de Bernie Sanders e Mélenchon. Aí havia espaço para compreende­r as razões dos eleitores sem perder a face. Mas agora, no Brasil, a queda foi a da esquerda certa, e os camaradas portuguese­s ficaram sem outra a que se agarrar.

Em segundo lugar, a ideia de que a segunda volta das eleições brasileira­s foi um embate “entre o fascismo e a democracia” é de um simplismo sedutor, mas que nos impede de querer ouvir o que o povo brasileiro tem a dizer sobre o ponto de saturação a que chegou. O que os brasileiro­s disseram é que não sentem grande diferença entre a ordem pistoleira de Bolsonaro e a desordem do PT. Porque a corrupção e o crime violento organizado, no que têm de captura do interesse público pelas cliques do costume, também são uma subversão da soberania popular e da vontade da maioria.

Podemos achar que os brasileiro­s estão errados. Podemos admitir que esta eleição era um daqueles casos em que, entre a causa e a consequênc­ia, um democrata deveria querer a continuaçã­o da causa em vez da antecipaçã­o da consequênc­ia. O que não podemos fazer é recuar tanto na defesa da democracia que o nosso único argumento passe a ser o de que é sempre possível uma escolha entre dois males. Como argumento, é verdadeiro. Como consolo, é fraco. A defesa da democracia, hoje, começa na rebelião contra a ditadura das escolhas impossívei­s.

Artigo em conformida­de com o novo Acordo Ortográfic­o

A ideia de que a segunda volta das eleições brasileira­s foi um embate “entre o fascismo e a democracia” é de um simplismo sedutor.

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