No Brasil, “ganhou” Umberto Eco
Há o fascínio das primeiras frases, começando pela de Proust quando inicia a sua procura, sobre ter ido para a cama cedo durante muito tempo. Mas prefiro os títulos provocatórios, sobretudo os desconcertantes. E as eleições no Brasil sugerem-me o deste texto. Eco não foi a votos, obviamente, e já nem sequer se encontra entre nós. Mas tenho-me lembrado dele, a propósito disso e de outros sinais que por aí se agigantam. Sei pouco, mas parece-me que, mais do que em Bolsonaro ou em Haddad, a maioria dos votos foi no “seu” contrário. As eleições foram marcadas pelo medo e pelo ressentimento, e não se votou por, votou-se contra; contra o petismo, contra o autoritarismo, contra o liberalismo, contra a insegurança, etc. Cada um elegeu um inimigo, e votou contra.
Um taxista perguntou a Umberto Eco quem eram os inimigos dos italianos e, perante a perplexidade do escritor, sublinhou a im- portância de ter inimigos. Isto conta o autor em “Construir o Inimigo”, texto de uma conferência de 2008, em que, partindo daquele episódio, explica a importância de ter inimigos, sejam eles reais ou construídos, pois o inimigo permite, por um lado, definir a nossa identidade e, por outro, ter uma medida de comparação para o nosso sistema de valores, assim o reafirmando. E o inimigo pode ser externo ou estar connosco – melhor, connosco não, mas partilhando o mesmo espaço. Pode ser o estrangeiro, o imigrante, aquele que tem uma religião diferente, que tem outra ideologia, uma cor diferente, um outro género, etc., aquele que tem qualquer coisa diferente, diferente no sentido de outra que não a de quem (seja uma pessoa ou um conjunto delas) encontra ou constrói um inimigo. Quer o inimigo externo quer o interno permitem, por contraste, reforçar a nossa identidade e solidificar os nossos valores. A necessidade de ter inimigos é ancestral, diria mesmo congénita aos indivíduos e aos povos, e raras vezes os indivíduos (e ainda menos os povos) procuram compreender o Outro, colocando-se no seu lugar.
Mas não é apenas uma questão de identidade, como diz Eco, seja identidade individual seja coletiva, não é apenas uma questão de nos reconhecermos a nós mesmos na presença do Outro. É também – e isso falta no texto de Eco – uma questão de melhor nos desculparmos, de melhor lidarmos com as nossas fraquezas e falhas e com os nossos medos. Trata-se, afinal, também de um mecanismo de transferência. O inimigo é o mais perfeito bode expiatório e, quanto mais complexas são as sociedades e quanto mais intensos (mesmo que difusos) são os medos e as fraquezas, tanto mais necessários são os inimigos, tanto externos como internos. Sobretudo internos, porque quanto mais próximos de nós me- lhor transferimos para eles tudo quanto precisamos de transferir. Construir inimigos, mais do que tudo, é uma forma de nos sentirmos protegidos. Mas, ao mesmo tempo, é um perigo terrível, porque tem o germe da tragédia e da destruição.
E é isso que – repetindo a História – estamos a ver aqui e ali, em muitos sítios, mais e mais. Gosto ou não gosto, identifico-me ou não? E só isso interessa, e define as decisões. E nunca é demais recordar o texto essencial de Tony Judt, e sublinhar que o mundo está cada vez menos calhado, preocupantemente, para “edge people”. E isso é muito inquietante, tanto mais quanto mais tivermos presente que a civilização é uma camada fina de frágil verniz que rompe facilmente, perante a ameaça ou a suposição dela. E assim costuma começar o caminho da tragédia.
Construir inimigos, mais do que tudo, é uma forma de nos sentirmos protegidos.
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico