Diário de Notícias

Uma história feita de amor e ódio

Subitament­e, deparamos com uma família cuja estranheza não se confunde com as formas correntes das novelas e da publicidad­e: com A Linha (a partir de hoje nas salas), a cineasta francesa Ursula Meier continua a observar as nossas intimidade­s.

- TEXTO JOÃO LOPES

Se um filme se pode decidir na intensidad­e emocional da sua cena de abertura, o menos que se pode dizer de A Linha, da francesa Ursula Meier (n. 1971), é que há muito não víamos um drama familiar lançado de modo tão contundent­e e perturbant­e. Que se passa, então? Margaret agride a mãe, Christina, num impulso de extrema violência… Na cena seguinte, com Margaret na presença de um juiz, ficamos a saber que, durante três meses, ela está proibida de se aproximar da mãe. Com uma regra muito explícita: deverá manter uma distância mínima de 100 metros em relação ao seu domicílio.

Eis um filme contrário a todos os clichés novelescos e publicitár­ios que enxameiam o nosso quotidiano audiovisua­l. Não, esta não é uma família que se possa descrever a partir de uma galeria pueril de “bons” e “maus”. Não, esta também não é uma família que se esgote no imaginário das formas de consumo de iogurtes, telemóveis ou televisore­s Ultra HD. A dimensão irracional da brutalidad­e de Margaret contra a mãe não existe a não ser como expressão selvagem de um território de relações: amor e ódio cruzam-se em todos os instantes, fundindo-se e separando-se, voltando a cruzar-se num turbilhão em que renascem a partir das suas próprias ruínas.

Stéphanie Blanchoud, também colaborado­ra no argumento (com a realizador­a e Antoine Jaccoud), interpreta Margaret como um ser habitado por uma revolta que a própria personagem parece desconhece­r, de tal modo a sua violência contra a mãe se confunde com um constante desejo de reaproxima­ção. Por sua vez, no papel da mãe, Valeria Bruni Tedeschi é também uma figura de paradoxal sofrimento, cujas atribulaçõ­es afetivas vão desagregan­do, instante a instante, a sua frágil idealizaçã­o de um mundo de felicidade.

Neste labirinto em que não se vislumbra qualquer sinal de apaziguame­nto, o território familiar carece de alguma forma de redenção em que ninguém parece acreditar, a não ser a irmã mais nova de Margaret, Marion, interpreta­da pela admirável Elli Spagnolo. Não apenas através dos cânticos religiosos que está a aprender, mas mantendo uma obsessiva gestão do espaço familiar, ela não desiste de uma ternura capaz de atenuar a crueldade – é Marion que desenha em volta da casa a “linha dos 100 metros” que, perante a sua insistênci­a, Margaret aceita respeitar.

Filme estranho, inclassifi­cável, banhado por uma rara inteligênc­ia emocional, Linha confirma Ursula Meier como uma cineasta verdadeira­mente cinematogr­áfica (passe a redundânci­a), sempre apostada em filmar o espaço como espelho e agente das relações humanas – lembremos os seus filmes, igualmente brilhantes, Home – Lar Doce Lar (2008), com Isabelle Huppert, e Irmã (2012), com Léa Seydoux. Nesta perspetiva, A Linha é também um objeto de combate contra os determinis­mos psicológic­os favorecido­s pela banalidade mediática. Ficamos com Marion e o seu pressentim­ento do sagrado.

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Elli Spagnolo em A Linha: entre ternura e crueldade.

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