Diário de Notícias

As Troianas. A tragédia intemporal da Guerra evocada em Sintra

Quase todas as noites, até 10 de agosto, a Quinta da Regaleira acolhe as palavras de Eurípedes, re-interpreta­das por Hélia Correia e Jaime Rocha. Trata-se da tragédia As Troianas, levada à cena pela Companhia de Teatro de Sintra.

- TEXTO MARIA JOÃO MARTINS FOTOS PAULO SPRANGER / GLOBAL IMAGENS

Aação abre numa praia, nos tempos apocalípti­cos que se seguem ao final da guerra de Tróia. Uma alcateia de lobos aproxima-se de um vulto indistinto, parado no areal, e conclui: “Oh, é uma mulher! Mas uiva, ouvis? Passam-lhe na garganta os nossos sons. Não fala a sua língua complicada. Pela primeira vez nos entendemos, humana e lobos? Feras, todos nós? Grita assim porque é mãe, a criatura. A história toda se resume a isto.”

E Hécuba, mulher do rei Príamo, mãe de 19 filhos, entre os quais Páris, Cassandra e Heitor, pois é dela que se trata, vai dizendo, enrolada sobre si mesma: “A dor... A dor do parto não é nada...”

Assim começa a tragédia As Troianas, de Eurípedes (dramaturgo do século V a.C.) na versão dos escritores portuguese­s Hélia Correia e Jaime Rocha, que estreou na última quinta-feira, na Quinta da Regaleira, em Sintra. Com encenação de Susana C. Gaspar

e Paulo Campos dos Reis, a peça tem interpreta­ção de André Pardal, Catarina Rôlo Salgueiro, Hugo Sequeira, Ivo Alexandre, Marques D’Arede, Paula Pedregal, Rute Lizardo, Susana Arrais, da própria Susana C. Gaspar e pode ser vista até 10 de agosto.

O espetáculo, que “exige” aos espectador­es um agasalho para as noites frescas do local e calçado confortáve­l, disporá de legendagem em português (para pessoas com problemas auditivos) e inglês.

Como nos explica Susana Gaspar, a peça integra-se no ciclo Geografia da Resistênci­a, que a Associação Chão de Oliva/Companhia de Teatro de Sintra definiu como eixo do seu trabalho de criação para 2024:“Anteriorme­nte tivemos um texto sobre as ameaças à liberdade de expressão e Direitos Humanos na Bielorrúss­ia de hoje e andávamos à procura de um texto mais intemporal. Foi então que o Paulo, da Musgo Associação Cultural, que já trabalhava com o poeta e dramaturgo Jaime Rocha, nos trouxe este texto.”

Paulo confirma: “Eu estava a falar com o Jaime, no âmbito de um trabalho que temos estado a fazer sobre heróis gregos masculinos, e ele trouxe-me este livrinho que fez com a escritora Hélia Correia, com a sua adaptação da tragédia escrita na Grécia Antiga por Eurípedes, um dos nomes grandes do teatro clássico.”

E, assim, como acrescenta Susana, aquilo que seria só para ser le

vado à cena mais tarde, no âmbito de um ciclo dedicado às mulheres, foi já integrado nesta Geografia da Resistênci­a.

De resto, para mal dos nossos pecados, o tema da guerra e do seu cortejo de vítimas tem hoje uma atualidade medonha. Mesmo que se trate de um conflito bélico de veracidade histórica incerta, entre os aqueus e os troianos, possivelme­nte entre 1300 e 1200 a.C. Como nos diz Paulo Campos dos Reis: “Todos os grandes textos de teatro, tenham sido escritos na Antiguidad­e ou hoje, possuem uma marca de intemporal­idade. Aqui, tanto falamos dos vencedores, como dos vencidos, mas sobretudo das vencidas e podemos imaginar sem dificuldad­e que estamos a falar das mulheres da Palestina de hoje.”

Susana faz notar, a propósito, que estas mulheres, atingidas de forma lancinante pela guerra, “não são, no entanto, apresentad­as como vítimas. São sobreviven­tes e, nessa condição, colocam-nos questões terríveis, como esta: Como é que se sobrevive à dor da perda de um filho?” E conclui: “São experiênci­as fortíssima­s que nos levam a refletir sobre os limites da condição humana.”

Ainda relacionad­os com a temática feminina, surgem outros problemas como a culpabiliz­ação da mulher. “O Jaime e a Hélia desconstro­em a versão tradiciona,l segundo a qual a beleza extraordin­ária de Helena teria sido a causa da guerra de Tróia.”

Será interessan­te recordar, a propósito da ida a palco destas Troianas tão particular­es, o preâmbulo que o investigad­or Delfim Leão escreveu para o livro de Jaime Rocha e Hélia Correia, publicado em 2018: “Alimenta-a a mesma indagação inquieta sobre a perdida identidade helénica, que não se esgota nas muralhas fumegantes de Tróia, nem na dourada tepidez dos hieráticos blocos da Acrópole: é um corpo vivo que pulsa e sofre a cada inalação cáustica do anunciado fim da história. Anima-a, até às raias da alienação dionisíaca, o drama patético do esgar da esperança, em luta desigual com as peias da má fortuna. Envolve-a, por fim, em negra bordadura, o lupino sarcasmo de quem desertou de paragens humanas, cujo silêncio esvaído contrasta com a álacre ‘festa da montanha’.”

Uma reflexão que se tornava ainda mais viva quando se sabe que o Teatro era, na Grécia Antiga, um local de partilha cívica, como escreve o mesmo autor: “Convém não esquecer que a dimensão cívica do teatro se prendia também com opções muito mais práticas, que tinham de ser tomadas bastante antes de surgir a magia do espetáculo. Iniciava-se com o próprio momento escolhido para as representa­ções (os festivais dionisíaco­s), que Atenas soube integrar nas manifestaç­ões de re“Mas ligião oficial, retirando, por esta via, a um culto potencialm­ente perigoso e perturbado­r da ordem pública, o risco do descontrol­o. Por outro lado, os festivais dramáticos eram ainda, em si mesmos, um theatron-spectaculu­m da própria cidade, que o berço da democracia facultava aos milhares de estrangeir­os que a visitavam, em particular por altura das Grandes Dionísias. E assim, o teatro constituía também uma poderosa arma diplomátic­a e negocial.”

Mas o que significa para os nove atores em palco trabalhar este texto cheio de marcas ancestrais? Susana reconhece que não foi fácil: “Comecei por ponderar se devia ou não atualizar o texto”, admite.

O tema da guerra e do seu cortejo de vítimas tem hoje uma atualidade medonha. Mesmo que se trate de um conflito bélico de veracidade histórica incerta, entre os aqueus e os troianos, possivelme­nte entre 1300 e 1200 a.C.

acabei por compreende­r que o grande poder do teatro é também deslocarmo-nos do nosso tempo e realidade. Na verdade, a força do texto está na sua intemporal­idade e em não evitarmos metáforas e lugares de beleza dentro da tragédia. É esse o grande poder da arte.” Paulo acrescenta que foi particular­mente estimulant­e para todos “a possibilid­ade de trabalhar em conjunto, ao lado dos responsáve­is pela dramaturgi­a, Hélia e Jaime.

Outro dos grandes atrativos desta encenação é o próprio cenário patrimonia­l e natural em que decorre: a Quinta da Regaleira. Susana recorda que a sua companhia queria fazer, há muito, um espetáculo ao ar livre: “Nunca nos tínhamos atrevido, mas este espaço é, de facto, especial. Estamos frente à Serra, às vezes estamos dentro de uma nuvem, o que torna a experiênci­a muito imersiva. Creio que pode ser algo especial.”

Ao longo de décadas de atividade, a Companhia de Teatro de Sintra já levou à cena textos de autores clássicos e contemporâ­neos como Tchekov, Marivaux, Federico García Lorca, Karl Valentim, Dario Fo, Shakespear­e, Stig Dagerman, Eduardo Pavlovsky, Maquiavel, Gao Xingjian, Jorge Listopad, August Strindberg ,H. Ibsen, Jean Cocteau, Maeterlink, Eugene O’Neil, Pirandello ou Tennessee Williams. E ainda adaptações de textos portuguese­s de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, Cesário Verde, Bernardo Soares/Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, Nuno Bragança, Maria Gabriela Llansol, Pedro Paixão e José Saramago.

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O espetáculo disporá de legendagem em português (para pessoas com problemas auditivos) e inglês.
 ?? ?? Um dos grandes atrativos desta encenação é o próprio cenário patrimonia­l e natural em que decorre: a Quinta da Regaleira. À esquerda, os encenadore­s Susana C. Gaspar e Paulo Campos dos Reis.
Um dos grandes atrativos desta encenação é o próprio cenário patrimonia­l e natural em que decorre: a Quinta da Regaleira. À esquerda, os encenadore­s Susana C. Gaspar e Paulo Campos dos Reis.
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