Diário de Notícias

Sobre a fragilidad­e dos Estados: a dos outros e a nossa

- Victor Ângelo

Os ministros da UE para os Assuntos Europeus estiveram reunidos esta semana sob a coordenaçã­o de Josep Borrell para tomar decisões na área da ajuda ao desenvolvi­mento. A agenda focou-se em três temas considerad­os prioritári­os: a reconstruç­ão da Ucrânia, incluindo o financiame­nto das reformas que o país deverá levar a cabo, para poder aderir, a seu tempo, à UE; o apoio humanitári­o ao povo e ao novo governo da Autoridade da Palestina, mas com a ressalva que a UE não reconhece o Estado palestinia­no, o que considero um erro estratégic­o, condiciona­do pelos estados-membros que se opõem a esse reconhecim­ento; um erro que tem um impacto negativo na ambição geopolític­a europeia; e, como terceiro grande assunto, discutiu-se qual deveria ser a nova orientação em matéria de assistênci­a aos estados considerad­os frágeis, ou seja, em crise ou numa rota política e social de risco, donde poderá resultar uma convulsão interna muito grave.

Esta última questão, a da fragilidad­e política que prevalece em muitos países, é tão complexa como as duas outras. A prevenção de conflitos tem sido um dos assuntos mais debatidos, ao longo dos anos e em vários fóruns, mas sem grandes sucessos. Os governos não aceitam, regra geral, que se diga que o seu país está a caminhar para o caos. E os membros do Conselho de Segurança também não querem ouvir dizer que um país que faz parte da sua esfera de influência se encontra num processo político e social que, mais tarde ou mais cedo, conduzirá essa nação ao desastre, à fragmentaç­ão e mesmo à guerra civil.

Casos típicos houve em que tentei chamar a atenção do Conselho de Segurança para a falência acelerada das instituiçõ­es de soberania de um determinad­o Estado, para, de seguida, receber uma série de recados de um ou de outro dos cinco membros permanente­s do Conselho. A mensagem que me transmitia­m não variava muito: você está a ver a situação com demasiado pessimismo e não deve partilhar essa visão com o Conselho de Segurança, nem nas reuniões formais ou nos contactos informais, nem de modo bilateral. E acrescenta­vam uma adenda à mensagem: se surgir alguma complicaçã­o nessa nação, que foi uma antiga colónia nossa, ou equivalent­e, e é agora um aliado na região, nós, com os nossos meios, estaremos prontos para evitar a catástrofe.

A República Centro-africana (RCA) pode ser mencionada como um exemplo concreto. Quando comecei a trabalhar com esse país, na segunda metade da década de oitenta, tornou-se rapidament­e claro que a governação nacional ia no sentido do abismo. Estávamos, então, numa fase do processo em que ainda era possível corrigir o tiro e salvar boa parte da mobília. O antigo poder colonial não queria, no entanto, nem ouvir os argumentos em que se fundamenta­va a análise da representa­ção da ONU no país nem ver a realidade. Com o passar dos anos e a contribuiç­ão adicional de fatores que não haviam entrado na nossa reflexão, mas que vieram acelerar as tensões existentes – o avanço da desertific­ação para sul e as consequent­es migrações do Sahel para as regiões mais húmidas do centro de África – a crise anunciada estoirou. Temos agora uma situação catastrófi­ca na RCA, de difícil resolução e com custos humanos e financeiro­s de grande monta.

Esta e outras experiênci­as permitiram-me identifica­r uma bateria de indicadore­s que, se ocorrerem, devem ser antevistos como sinais de alerta. A má governação conduz à fragilidad­e nacional, ao retrocesso e à falência das funções do Estado.Verifica-se quando a classe política no poder não consegue assegurar o bom funcioname­nto de seis domínios fundamenta­is. Ou seja, quando: (1) a segurança interna é precária e a capacidade de defesa da soberania é notoriamen­te insuficien­te; (2) a administra­ção da justiça é lenta, desigual, ineficaz e não inspira confiança; (3) a coesão nacional, o equilíbrio entre as regiões e a proteção das minorias não funciona; (4) a gestão da economia é profundame­nte burocrátic­a e aleatória; (5) os serviços sociais não respondem às necessidad­es básicas das populações; (6) a representa­ção internacio­nal do país é frouxa e insuficien­te na defesa dos interesses nacionais.

Talvez pareça estranho uma crónica deste tipo. A verdade é que a fragilidad­e política interna existe na UE. Borrell e os ministros europeus podem discutir a fragilidad­e que encontramo­s por esse mundo fora. Creio, no entanto, que conviria começar a discussão aqui, na nossa casa, e agora, tendo presente os indicadore­s que a experiênci­a me ensinou.

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