Ainda a questão do logótipo... e por que não é essa a questão
Regresso ainda ao tema da mudança do logótipo do Governo porque, após dias e dias de tanta gente a perorar no espaço público sobre o assunto – que aparentemente não mereceria tanto “tempo de antena” não fosse Portugal... Portugal! –, há uma questão relacionada que, curiosamente, quase ninguém (pelo menos que eu tenha dado por isso) debateu.
Aqui vai! A mudança do logótipo do Governo para um modelo “mais moderno” criado por Eduardo Aires (sobre cuja qualidade de design não vou aqui fazer quaisquer comentários, uma vez que é precisamente isso, design – não se comenta, na melhor das hipóteses lamenta-se) ocorreu em simultâneo com a mudança da designação que acompanha toda a comunicação oficial emitida pelo Executivo: de “Governo de Portugal” passou a “República Portuguesa”.
Em boa verdade, não sou o primeiro a referir o assunto. Pelo menos o ex-líder da IL, João Cotrim de Figueiredo, fê-lo aos microfones da SIC, e Pacheco Pereira também o mencionou, na CNN Portugal (se mais alguém o referiu, não dei por isso, e peço desculpa...), mas ambos o fizeram tão en passant que não me deixaram satisfeito.
É que a mudança não é seguramente inocente. Prende-se com um hábito useiro e vezeiro em certo tipo de cabeças na política portuguesa de confundir o poder Executivo com a própria República – melhor será dizer, o Estado.
Uma confusão que vem sendo nos últimos 50 anos (pelo menos!) impregnada na sociedade de tal forma que parece indiscutível, mas que na realidade põe em causa a própria democracia.
É que, Constitucional e Democraticamente (maiúsculas propositadas), nunca pode o Governo assumir a designação de República Portuguesa (e, neste sentido, mal esteve o atual Executivo de Luís Montenegro em, apesar de ter mudado o logótipo, ter mantido estas palavras nos documentos e comunicações). A República é toda a organização política do Estado, ultrapassa (em muito) o Governo, limitado que está por todas as normas Constitucionais e equivalentes – ele próprio, lembre-se, emana do Parlamento, não é eleito diretamente. E o poder destes dois é equivalente ao Judicial. Sem “pesos e contrapesos” não existe democracia, como muito bem me ensinou Marcelo Rebelo de Sousa na Faculdade de Direito de Lisboa nos idos Anos 90 do século passado.
Só que a confusão perpassa a sociedade a todos os níveis. Mesmo na forma como falamos.
O melhor exemplo que posso dar – porque ao longo dos últimos 50 anos até parece que tudo fizeram para que não houvesse qualquer literacia financeira no povo, de onde nasce a legitimação do poder político – é o facto de usarmos “Estado” e “Governo” como sinónimos quando falamos de receita e despesa pública.
Objetivamente, a receita é, de facto, do Estado: provém, grosso modo, dos impostos de todos os cidadãos (que formam o Estado). É o dinheiro de cada um de nós; é o seu dinheiro, que o entrega aos organismos públicos para que estes ajam em seu nome, gerido por pessoas como o leitor, mas pagas para essa função, para que lhe prestem serviços essenciais – segurança, saúde, etc. – de forma a melhorarem o seu dia a dia. Nos termos clássicos, é o “contrato social”.
Mas na realidade quem decide onde gastar (ou investir...) esse dinheiro é o Governo. Não sou eu – ou o leitor, a não ser que faça parte do Executivo – quem tem esse poder.
Assim, em lugar de chamar ao OE Orçamento do Estado, este dever-se-ia designar Orçamento do Governo. É este último quem decide onde aplicar o dinheiro (poder) que recebe... do Estado (povo).
Mas a confusão dá jeito, politicamente. Porque assim os políticos passam a ideia de que estão sempre a agir exclusivamente em prol das pessoas. Além disso, convém muito mais que estas não se lembrem de que uma (ainda que minúscula) fatia daquele enorme bolo que eles estão a dividir e gerir é, na realidade, contribuição sua – até porque com isso aumenta a responsabilização.
A verdadeira democracia só pode existir enquanto cada um de nós se sentir empoderado o suficiente dentro da sociedade sabendo na perfeição que quem está no poder só o ocupa porque nós, individualmente, lho demos. E que podemos tirar de lá quem o exerce na próxima oportunidade. Ter bem presente a ideia de que quem detém o poder Executivo está permanentemente a gerir o nosso dinheiro é, para isso, um conceito essencial à democracia. Confundir o Governo com a República/Estado é (mais) uma pequena brecha neste conceito fundamental. Tal como Estado com Governo.
Nesta aceção, e apenas por isso, ainda bem que voltaram as quinas e a esfera armilar ao logótipo. Pelo menos, assim, agora o símbolo bate mais certo com as palavras. Estas – República Portuguesa – é que nunca deveriam ter sido postas pelo Executivo de Costa em páginas e documentos que mais não são que o Governo.
Pelo menos, agora o símbolo bate mais certo com as palavras. Estas – República Portuguesa – é que nunca deveriam ter sido postas pelo Executivo de Costa em páginas e documentos que mais não são que o Governo.”