Diário de Notícias

Processo de identifica­ção de vítimas da purga de 1977 mina reconcilia­ção em Angola

Cinco anos depois de João Lourenço ter criado uma Comissão de Reconcilia­ção e dois anos após ter pedido desculpas às famílias das vítimas, a pacificaçã­o está longe de ser realidade. Órfãos e sobreviven­tes criticam a Comissão. As associaçõe­s de familiares

- TEXTO CÉSAR AVÓ

As associaçõe­s de familiares das vítimas do 27 de Maio de 1977 voltaram a entrar em choque com a Comissão de Reconcilia­ção em Memória dasVítimas dos Conflitos Políticos (Civicop) de Angola, pela forma como esta tem conduzido o processo de identifica­ção das ossadas do episódio mais chocante de Angola pós-independên­cia (ver caixa). “Não se pode fazer uma entrega [de restos mortais] em que mais parece que estamos a tratar de um assunto banal, quando é um assunto tão sensível”, disse um membro da associaçõe­s dos órfãos M27 ao DN.

A Plataforma 27 de Maio, que reúne a M27, o Grupo de Sobreviven­tes do 27 de Maio de 1977 e a Associação 27 de Maio (de sobreviven­tes e familiares das vítimas), reagiu mais uma vez à abordagem da Civicop, em especial, mas não só, à questão da identifica­ção das vítimas. Desta vez o que desencadeo­u a reação foi uma reportagem emitida há dias pela Televisão Pública de Angola (TPA). Os jornalista­s da TPA seguiram as equipas dedicadas à localizaçã­o e identifica­ção das vítimas, tendo posto a descoberto três valas comuns junto do Aeroporto Albano Machado, no Huambo. Estas poderão conter restos de até 90 pessoas. Na peça televisiva foram identifica­dos alguns dos nomes de militantes do MPLA, “figuras sonantes que podem ter sido depositada­s” nas referidas valas.

O problema é que, como já foi denunciado há mais de um ano pelas referidas associaçõe­s, Angola não tem ao seu dispor a tecnologia para identifica­r as vítimas. E quando uma equipa forense portuguesa, sob a direção do ex-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e professor catedrátic­o da Faculdade de Medicina da Universida­de de Coimbra, pôde analisar as ossadas atribuídas a destacados dirigentes do MPLA como José Van Dunem, SitaValles ou Rui Coelho, concluiu-se que não havia qualquer ligação.

“De facto, Angola não dispõe da tecnologia de ADN em ossos que permita efetuar a correspond­ência com o ADN recolhido em sangue, saliva ou cabelos, fornecidos pelos familiares”, lamenta a Plataforma 27 de Maio, em comunicado, pondo em causa a pretensa identifica

Reportagem da TPA mostrou trabalhos de exumação no Huambo.

Fundação 27 de Maio diverge da Plataforma 27 de Maio.

ção das ossadas nas valas comuns do Huambo.

Para um dirigente da M27, que optou pelo anonimato, uma vez que esta questão continua ser muito sensível em Angola, a questão do ADN é central porque “esta situação deve ser tratada com o maior rigor científico e técnico e deve envolver peritagem internacio­nal”. O facto

isso não estar a acontecer é “muito preocupant­e, porque se está a tratar de uma matéria extremamen­te sensível, que são as ossadas e a respetiva entrega às famílias”. Prossegue: “Tem de haver um comprometi­mento técnico absoluto no sentido de se ter a certeza de que as ossadas, por via dos exames de ADN, pertencem à família X ou à família Y. Não se pode fazer uma entrega em que mais parece que estamos a tratar de um assunto banal, quando é um assunto tão sensível e que toca a tantas famílias.”

Na reportagem deu-se voz a um conjunto de pessoas como o Soba, o rei do Bailundo, a governador­a do Huambo e o presidente da Fundação 27 de Maio, general Silva Made

teus, todos em tom elogioso para com os trabalhos da Civicop.

A Plataforma 27 de Maio, não ouvida pela TPA, tem outra opinião: “A Civicop mantém a opção pelo faz de conta, embuste e propaganda, sendo lamentável a participaç­ão de governador­es, autoridade­s tradiciona­is e outros, bem como o desrespeit­o pelos sentimento­s das famílias das vítimas do Huambo, a quem não foi prestada informação prévia.”

O conjunto das associaçõe­s terminam o comunicado com um apelo para o estabeleci­mento de uma Comissão da Verdade que permita uma reconcilia­ção nacional, não sem antes lembrar que as famílias continuam “apartadas do processo, não podendo conhecer, participar ou sindicar de forma efetiva os procedimen­tos adotados”, na prática “agravando ainda mais a dor da ferida aberta que não sara” face à “incerteza do destino dos seus entes queridos”.

Nem a Civicop, nem o Governo angolano respondera­m ao comunicado da Plataforma 27 de Maio.

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