De onde vêm e para onde vão as imagens?
Como viver com as imagens que nos rodeiam? Como pensá-las? Aceitamo-las ou resistimos-lhes? E o que significa aceitar uma imagem ou resistir a uma imagem?
São perguntas correntes, talvez obsessivas, das últimas décadas do nosso planeta, desde que a televisão se impôs como templo das nossas crenças e descrenças e, sobretudo, a partir do triunfo da internet, não como espelho do mundo, mas, de facto, como um mundo outro. Todas elas perpassam por um filme fascinante, intitulado Máquina Fantástica, com assinatura do sueco Axel Danielson e do francês Maximilien Van Aertryck (lançado esta quinta-feira pela distribuidora Alambique, disponível a partir de 4 de abril na plataforma Filmin).
Máquina Fantástica começa por ser um prodígio de montagem. Através da colagem de inúmeros fragmentos (de filmes, das mais variadas emissões televisivas, de vídeos da internet, etc.), começamos por reconhecer o “estado das coisas”. A saber: a partir de finais do século XIX, fotografia e cinema refizeram os modos de ver e representar o mundo à nossa volta, no limite transfigurando a nossa identidade pública e privada.
O projeto envolve uma documentação paradoxal, inevitavelmente perversa, da nossa realidade quotidiana, não-exatamente “espelhada” nos ecrãs da televisão e dos computadores, antes adquirindo nesses ecrãs o poder de uma nova realidade em que a representação do mundo se confunde com o próprio mundo – o que, além do mais, tende a instrumentalizar a noção clássica do que seja a arte ou um gesto artístico.
Há mesmo um fragmento de um filme de 1951, The Magic Box, realizado por John Boulting, que condensa a nossa tragédia audiovisual. Nele encontramos Robert Donat a assumir a personagem verídica de William Friese-Greene (1855-1921), pioneiro inglês do cinema, mostrando a um assustado polícia uma novidade absoluta: algumas breves imagens em movimento projetadas num lençol. Interpretado por Laurence Olivier, o polícia levanta o lençol, tentando perceber qual o truque de tão radical ilusão, e formula uma dupla interrogação: “De onde veio? E para onde foi?”
Em boa verdade, tal interrogação pode resumir o delírio imagético em que vivemos. Como um dia disse Jean-Luc Godard, o filme descoberto pelo espectador numa sala de cinema é um objeto que, mal ou bem, cumpre uma lógica de comunicação – quando esse mesmo filme passa num ecrã de televisão, “não sabemos para onde vai”.
O fascínio das imagens faz-se de muitos contrastes. Manifesta-se no espanto com que os astronautas fotografam o planeta Terra a que vão regressar, mas também na mais estúpida proeza “existencial” que possamos encontrar no YouTube ou no TikTok – observe-se, por exemplo, a pose do ciclista que, face às chamas de um acidente numa rua, se coloca de costas para o fogo e tira uma selfie…
Nada a ver com o paraíso de transparência “informativa” que muitos protagonistas televisivos gostam de promover e, mais do que isso, protagonizar. Como Máquina Fantástica demonstra com pedagógica contundência, cada imagem que se produz e divulga está longe de ser a encarnação de uma objetividade intocável, exisEm
tindo sempre (mas sempre!) como resultado de um processo seletivo que envolve escolhas – do modo de enquadrar, até às narrativas que sustentam a sua difusão.
boa verdade, estamos todos em guerra. Guerra de imagens, entenda-se, pontuada pela violência simbólica de significações desencontradas, frequentemente inconciliáveis. No limite mais inquietante, e também mais obsceno, de tudo isto, essa violência de raiz iconográfica coabita com a violência literal da agressão física e das armas de fogo – observamos tal dinâmica nas imagens infinitamente perturbantes da invasão do Capitólio, em Washington, a 6 de janeiro de 2021, mostradas em Máquina Fantástica.
Lembram os realizadores: “A cada minuto, são publicadas mais de 500 horas de imagens de vídeo.” O filme de Danielson e Van Aertryck consegue a proeza de desmentir a ideologia dominante que “naturaliza” a circulação dessas imagens, contrapondo uma verdade técnica e educativa, numa palavra, política: a mera acumulação de informação não constitui, por si só, uma garantia de conhecimento.
Ao contrário do que proclama a ideologia dominante, informar é selecionar e narrar — nenhuma imagem é ‘natural’.”