Diário de Notícias

Mais umas crianças semiportug­uesas

- Miguel Romão Professor da Faculdade de Direito da Universida­de de Lisboa

Pelos vistos, apenas aceitamos naturaliza­ções de quem queira vir cá cantar o hino, depositar dinheiro e pagar impostos. Tudo o mais é fraude à lei!

Asituação das crianças com nacionalid­ade portuguesa e brasileira residentes no Brasil que receberam um medicament­o de quatro milhões de euros administra­do pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem sido comentada de um modo e com uma suspeita que me levanta muitas dúvidas.

Não sobre o procedimen­to que levou à atribuição final do medicament­o, após ter sido negado por hospitais públicos portuguese­s aparenteme­nte por critérios clínicos – infelizmen­te, esse procedimen­to, atendendo ao que é público hoje, não me levanta nenhumas dúvidas. Perante o que é publico e os testemunho­s e documentos apresentad­os na imprensa, é impossível que não se veja neste caso, como dizia a mãe das crianças, o bom do pistolão. E um pistolão em bom, atendendo à sua graduação. Pistolão é, dizem os dicionário­s, no português do Brasil, “empenho ou recomendaç­ão de pessoa importante ou influente” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]). Mas parece que pode ser também “fogo de artifício”, o que está bem patente agora também... O Ministério Público que decida, sabendo-se, e todos ouviram, que há manifestam­ente, em relação ao Presidente da República, “o conhecimen­to da invocação do nome e da autoridade do (Presidente) e da sua intervençã­o para desbloquea­r procedimen­tos”, mesmo procedimen­tos legais, para usar, ipsis verbis, a agora formulação clássica do Ministério Público para derrubar titulares de órgãos de soberania, e que já deve estar minutada pelas comarcas do país, como boa ode à conveniênc­ia e ao arbítrio judiciário que é.

A minha dúvida decorre do modo como se fala de crianças brasileira­s, com sorte luso-brasileira­s e, quase nunca, portuguesa­s, como sua mãe. E como muito raramente se diz que qualquer nacional português, independen­temente de onde resida, tem direito a usar o SNS em Portugal.

Pode discutir-se a bondade, adequação ou ilimitação da regra – não creio legítimo é que a regra seja apta e impoluta, por exemplo, para o SNS receber taxas pela utilização de um hospital e já não o seja para um doente receber um medicament­o, mesmo que este custe dois milhões de euros, uma vez que os tratamento­s médicos são coisa séria e ninguém anda a tomar medicament­os só para passar o tempo ou onerar contribuin­tes. Se calhar, em vez de se andar, de forma sempre meio sonsa, a deixar comentário­s e suspeitas sobre a obtenção da nacionalid­ade portuguesa, destas e de outras pessoas, mais valia mudar as leis. E que os partidos com assento no Parlamento, bem como os mais diversos grupos que defendem essa posição, o dissessem claramente.

Esta situação absurda em que o País, seguindo os governos e os parlamento­s pelo menos da última década, com governos que incluíram três partidos, escolheu e votou determinad­os critérios para a obtenção da nacionalid­ade portuguesa e depois favorece um ambiente público de desconfian­ça e de menorizaçã­o de quem usa os seus direitos, é uma situação, em boa medida, vergonhosa.

Sim, é muito mais fácil hoje alguém naturaliza­r-se português do que já foi. Mas, pelos vistos, apenas aceitamos naturaliza­ções de quem queira vir cá cantar o hino, depositar dinheiro e pagar impostos. Tudo o mais é fraude à lei! Naturaliza­ções daqueles que, sendo agora portuguese­s, queiram vir para Portugal trabalhar, estudar, tratar-se num hospital ou, insulto magno, até pensar em viajar e trabalhar noutro país europeu – como se houvesse algum melhor que Portugal! –, esses traidores às quinas e à fé, isso não! E, claro, se para mais têm dinheiro, sejam bem-vindos ao cúmulo da lusitanida­de: a mescla em dose certa de inveja, maledicênc­ia e pequena sacanice, algo que só por cá se obtém nestas porções reforçadas que temos para oferecer.

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