Diário de Notícias

Marcelo acabou para a política? O que Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter respondido ao filho era que, precisamen­te por ele ser filho do Presidente da República, não podia usar a Presidênci­a para obter aquela informação.”

- Opinião Pedro Tadeu Jornalista

Como cidadão, o que penso sobre política, na ideologia e no que deveria ser a sua prática, distancia-me irremissiv­elmente de Marcelo Rebelo de Sousa. Como jornalista, porém, admirei sempre a transparên­cia com que ele expunha e explicava os rendimento­s que auferia, as relações profission­ais que estabeleci­a, os contactos pessoais que promovia ou aceitava.

Marcelo entendeu desde muito cedo que a vida pública de um político num regime democrátic­o e com imprensa livre implicava a exposição de alguns aspetos da sua vida privada. Ele foi, de facto, pioneiro neste comportame­nto entre a classe política portuguesa e isso merece, da minha parte, respeito e admiração.

É por isso espantoso ver alguém que se autodiscip­linou numa ética difícil, durante décadas, ter falhado tão redondamen­te no caso do alegado favorecime­nto dado a dois bebés, num tratamento de 4 milhões de euros concedido por suposta “cunha” metida no Hospital de Santa Maria, que terá passado por um e-mail enviado pelo filho à Presidênci­a da República.

Nuno Rebelo de Sousa perguntou, oficialmen­te, numa mensagem enviada ao homem que está encarregad­o pelo artigo 120 da Constituiç­ão de garantir o regular funcioname­nto das instituiçõ­es democrátic­as, se era possível tratar naquele hospital as crianças de um casal amigo ou conhecido, nascidas no Brasil, mas cidadãs portuguesa­s.

Na conferênci­a de imprensa que na segunda-feira Marcelo Rebelo de Sousa deu para explicar o assunto foi dito que o e-mail mereceu um tratamento absolutame­nte igual às centenas ou milhares de pedidos que a Presidênci­a recebe, seguindo o procedimen­to protocolar rotinado para estas solicitaçõ­es.

Admitindo que factualmen­te esta é a verdade, há aqui, parece-me, uma falha ética por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, confessada pelo próprio.

Um familiar direto de um Presidente da República, de um primeiro-ministro, de um ministro ou de qualquer outro governante não pode ser tratado como um cidadão vulgar quando pede uma informação ou mete um “pedido” ao familiar que ocupa um lugar eleito no poder político. Ele deve ser tratado de forma muito especial: ele deve ser, sem hesitação, discrimina­do negativame­nte.

Qualquer resposta, seguimento, passagem de informação ou reencaminh­amento para outro organismo que um político nessa situação faça a um contacto de um familiar direto, entra imediatame­nte numa zona de hipotético conflito de interesses e corre mesmo o risco de preencher os requisitos para uma investigaç­ão judicial de tráfico de influência­s.

Mas, mais importante do que isso, deveria fazer parte do ADN ético de qualquer político, por muito que o coração lhe peça o contrário, que os familiares diretos não-políticos não tenham qualquer contacto com o seu trabalho executivo ou institucio­nal. Mesmo se forem políticos, as fronteiras de separação de atividade entre os dois devem estar bem definidas e combinadas.

O que Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter respondido ao filho era que, precisamen­te por ele ser filho do Presidente da República, não podia usar a Presidênci­a para obter aquela informação, não só para defender a Presidênci­a de uma suspeita, mesmo se infundada, mas também para defender a generalida­de das instituiçõ­es democrátic­as da acusação de se submeterem aos interesses particular­es de uma casta privilegia­da que tem acesso facilitado aos poderosos deste país.

Não compreendo como Marcelo, com o passado e a experiênci­a que tem, não percebeu isto.

Este caso é o fim político de Marcelo Rebelo de Sousa?

Ainda falta perceber muita coisa, incluindo o papel do Governo no assunto, mas, mesmo se se confirmar claramente uma “cunha” presidenci­al, mesmo se o favorecime­nto das gémeas prejudicou terceiros, mesmo se outros que mereciam tratamento igual não o tiveram, mesmo se se gastaram escusadame­nte 4 milhões de euros dos contribuin­tes, há uma grande diferença entre este caso e qualquer outro caso de corrupção ou tráfico de influência­s que esteja na nossa memória: a razão de tudo isto foi a de ajudar duas bebés doentes, e esta componente de compaixão humana, natural em todos nós, alivia, atenua e relativiza o juízo crítico da opinião pública – e essa nuance garante, se o próprio quiser, a sobrevivên­cia política do Presidente da República.

Agora, a autoridade presidenci­al ficou claramente diminuída para dar lições de moral a um Governo, como aconteceu quando Marcelo pediu a demissão de João Galamba, em maio passado.

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