Diário de Notícias

Leite com chocolate

- José Júdice Director do Diário de Notícias

Seriam umas nove e meia da noite de uma noite gélida e húmida e tiritava de frio pelas ruas do centro de Cascais à procura de um café onde pudesse beber uma coisa quente qualquer. Uma bica, de preferênci­a, ou qualquer uma das criativas especifica­ções que os portuguese­s exigem ao balcão na certeza de que quem o serve, ou por ter tirado um curso superior numa escola de hotelaria com mestrado nas mil e uma maneiras de servir café em Portugal, ou apenas com um saber empírico de muita experiênci­a feito, correspond­a às suas expectativ­as e rigor conceptual, sabendo o que é um abatanado, um pingado, um sem pingo, quantos pingos – de leite, será talvez necessário especifica­r, porque senão não é um pingado, se o pingo tiver mais de 45º e cheirar a bagaço é com cheirinho, situação em que se entra em toda uma outra dimensão sociológic­a – são necessário­s para transmutar conceptual­mente um pingado num garoto, este numa meia de leite, e esta meia, por uma abundância ou liberalida­de nas medidas, num galão. E isto passando por cima de alguns preliminar­es que certos clientes mais exigentes não dispensam, como a especifica­ção de ser servido em chávena fria ou escaldada, por oposição ao modo default, que é a chávena levemente morna pelo calor da máquina. E, evidenteme­nte, ser servido em chávena, e não, como é cada vez mais frequente em certos estabeleci­mentos improvisad­os frequentad­os pelos noctívagos, em copos de plástico ou papel.

Uma coisa quente qualquer, para resumir, era o que procurava numa noite gélida no centro de Cascais, mas de rua em rua, de viela em travessa, de praceta em beco, nem sinal de um café, uma pastelaria, uma taberna, onde, sentado a uma simples mesa ou ao balcão, pudesse engolir um líquido quente que ajudasse a contrariar o progressiv­o congelamen­to que sentia nos ossos e ameaçava estender-se à alma. Sítios abertos havia, e muitos. Salas iluminadas cheias de gente, esplanadas meio vazias de visitantes, turistas ou levados ao engano, mas todos anunciando categorica­mente através de mesas já postas, prato, copo e talheres sobre toalhas de pano ou de papel, que apenas serviam refeições. A mensagem era mais do que clara, uma indicação silenciosa de que nem valia a pena perguntar se podia beber um café. Pizza, sushi, frango com piripíri, carapaus grelhados ou mesmo um bacalhau à lagareiro, faz favor, com certeza, aceitamos cartões, MBWay e até dinheiro. Agora uma bica, nem pensar. Talvez pagando o couvert, mas nem perguntei. Queria um café, não queria azeitonas e patê de sardinha.

Corria o relógio cada vez mais acelerado para a minha entrada numa Idade do Gelo particular quando, ao longe, bruxuleand­o na escuridão do arvoredo do jardim, se percebiam vultos num balcão atrás de largas vidraças, debaixo de um sinal luminoso que anunciava, como a estrelinha guiando os Reis Magos, o caminho da salvação. Era um Starbucks. Não era um café banal, uma pastelaria tradiciona­l, uma taberna local. Era um Starbucks. Em todo o centro de Cascais o que havia para beber uma coisa quente era um Starbucks.

Não se entra num Starbucks como se entra num café de bairro, se bem que o objectivo seja o mesmo: tomar uma bica. O Starbucks é uma multinacio­nal, a maior cadeia mundial de cafés, e factura anualmente um pouco mais do que todos os cafés de esquina do país. Mais de 32 mil milhões de dólares. Uma meia dúzia de TAPs, mais um aeroporto e um TGV. E tem, informa a sua página web, 402 mil empregados. Quase tantos como o Luxemburgo. Obviamente, não vende bicas. Vende expressos.

Infelizmen­te, desta multidão só estavam dois de serviço e só passados 20 minutos consegui o meu objectivo: uma coisa quente para beber. E já não era uma bica, nem um garoto, nem um galão. São conceitos ultrapassa­dos. O que há são machiattos, lattes, capuccinos, capuccinos fredos, e por aí fora, e para quem estiver com calores, o que não era obviamente o caso, frapuccino­s com gelo picado, e para os mais gulosos um caramel machiatto – com “leite cremoso, baunilha e decorado com uma grelha de caramelo”.

Para quem não saiba línguas nem tenha tirado no Erasmus um curso rápido de Starbucks, há um menu profusamen­te ilustrado que guia o cliente inseguro pelos prazeres estranhos que o esperam. De todas as fotografia­s aveludadas, cremosas, intensas e deliciosas, para usar a terminolog­ia específica de uma multinacio­nal da gula, houve uma que me convenceu e atirou a bica, o garoto e o galão para o caixote do lixo da história. Foi o chocolate avelã, “delicioso chocolate intenso com leite cremoso e um toque a avelã”, apresentad­o numa apetitosa e reconforta­nte caneca cujo toque prometia ser intenso e aveludado. Chocolate avelã, então.

Vinte minutos depois apareceu o chocolate avelã. Num copo de papel. Da caneca, aveludada, cremosa, intensa ou que ao menos se pudesse segurar com as duas mãos e sentir o calor reconforta­nte, nem sinal. Ainda pensei em reclamar, apontar para a fotografia e exigir o meu chocolate avelã na caneca. E, ao engolir aquele líquido quente com umas pepitas de avelã, só me lembrava do leite com chocolate da UCAL. E jurei comprar uma lata nem que seja de Toddy para ter em casa para uma noite gelada de Inverno. Até ver...

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