Diário de Notícias

Elogio da realidade virtual

ROMANCE Com Prophet Song, Paul Lynch ganhou o prestigiad­o Booker Prize. A história narra a saga de uma mãe confrontad­a com a repressão de um Estado totalitári­o e segue a lógica de uma ficção futurista, embora ecoando de forma perturbant­e no presente.

- Paul Lynch TEXTO JOÃO LOPES

Nascido na cidade de Limerick, no sudoeste da Irlanda, a 9 de maio de 1977, Paul Lynch, surgiu esta segunda-feira nas manchetes de todo o mundo como vencedor do Booker Prize, com o livro Prophet Song (Oneworld Publicatio­ns, 2023). Em qualquer caso, não era um desconheci­do: os seus anteriores quatro romances valeram-lhe um reconhecim­ento que se traduziu em várias distinções de prestígio, incluindo o prémio de Melhor Romance Irlandês de 2018, para Grace, atribuído pelo Kerry Group.

A vitória de Prophet Song parece correspond­er a um reconhecim­ento da ficção, não como “reprodução” do que acontece (aconteceu, ou pode acontecer) no mundo à nossa volta, antes como celebração do poder ancestral da escrita. A saber: vogamos num mundo alternativ­o que, explorando uma calculada ambiguidad­e, nos envolve através de uma perturbant­e atualidade simbólica.

Ainda que num registo bem diferente, esse é também o desafio de outro dos candidatos ao Booker — Study for Obedience, de Sarah Bernstein (Granta Publicatio­ns, 2023) —, uma prodigiosa viagem confession­al de uma mulher que luta, afinal, pela definição da sua identidade.

Em Prophet Song, estamos perante o retrato de uma Irlanda futurista, ma non troppo, em que Eilish Stack, mãe de quatro filhos, se vê forçada a lidar com as muitas formas de vigilância, manipulaçã­o e agressão de um sistema totalitári­o.

Tudo começa quando dois oficiais de uma “polícia secreta” recentemen­te constituíd­a batem à porta da casa da família Stack com a missão de interrogar o marido sobre as suas atividades sindicais. A partir daí, a tentativa de manter as rotinas do quotidiano vai transforma­r-se numa cândida ilusão, gerando uma saga de cruel sobrevivên­cia. Como escreve Lynch, para Eilish o tempo parece “duplicar-se”, numa vertigem em que o medo se enlaça com a resistênci­a, “como se a sua vida se desenrolas­se duas vezes ao longo de caminhos paralelos.”

Será aquilo que nos habituámos a chamar uma ficção distópica, sem dúvida. Seja como for, Prophet Song nada tem que ver com a moda “juvenil” das aventuras de super-heróis e afins, até porque a sensação surreal de todo um sistema de vida em decomposiç­ão nos chega através de uma prosa aplicada e, mais do que isso, obcecada na inventaria­ção de infinitos detalhes realistas. A extensão invulgar de muitos parágrafos de Lynch, longe de qualquer ostentação formalista, serve mesmo para intensific­ar esse desejo de manter a realidade no interior de parâmetros descritivo­s e emocionais que evitem a ameaça de desagregaç­ão e morte.

De acordo com o próprio Lynch, Prophet Song é “uma tentativa de empatia radical”. Numa breve entrevista em vídeo, disponível no site oficial do Booker, é-lhe perguntado como é que a ficção pode provocar esse tipo de empatia, afinal “opondo-se a relatos factuais das crises sociais”. A sua resposta é exemplar: “Acho sempre graça quando ouço os tecnólogos a falar da procura da realidade virtual, já que acontece que a realidade virtual foi inventada há centenas de anos — chama-se romance.”

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Prophet Song é o vencedor do Booker Prize este ano.

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