Diário de Notícias

O que nos pode salvar

- Ana Paula Laborinho Diretora em Portugal da Organizaçã­o de Estados Ibero-Americanos

Ésobejamen­te conhecida a crítica de Theodor Adorno e Max Horkheimer, dois pensadores judeus perseguido­s pelo regime nazi, à indústria cultural, enquanto estética que se ficaria pela repetição de padrões e, assim, se subordinar­ia às leis económicas e ao consumismo. Não deixaram, aliás, de notar a utilização, por exemplo, que o regime nazi fez do cinema ou da música. Tendo cunhado negativame­nte esta designação em finais dos Anos 40 do século passado, o termo foi recuperado e ampliado décadas mais tarde, nomeadamen­te pela UNESCO, enquanto modos de criar, produzir, distribuir e desfrutar de bens culturais, capazes de produzir riqueza e empregos, sendo também motores de inovação e mudanças tecnológic­as. Gilberto Gil, ministro da Cultura do Brasil entre 2003 e 2008, deu um impulso fundamenta­l à ideia de economia criativa, não apenas pelo seu impacto económico, mas também pelo contributo para a inclusão e coesão sociais. A economia criativa representa atualmente entre 2 a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) na região ibero-americana, com um potencial enorme de cresciment­o.

Num estudo promovido pela OEI em colaboraçã­o com a CEPAL (Comissão Económica para a América Latina e Caribe das Nações Unidas), que se publicou em meados de 2021, Contribuiç­ão da Cultura para o Desenvolvi­mento Económico na Ibero-América, indica-se que, em 2013, as Indústrias Culturais e Criativas (ICC) obtiveram mais 125 mil milhões de lucro, muito acima de outras indústrias tradiciona­is. Contudo, numa outra pesquisa publicada já em final de 2021, que analisa o impacto da covid-19 no setor cultural na América Latina, com recurso a inquéritos realizados nos diferentes países, estima-se que 2,6 milhões de agentes culturais foram seriamente afetados, com uma redução de mais de 80% nas suas receitas.

O setor cultural foi reconhecid­amente um dos mais afetados pela pandemia, não tendo ainda conseguido recuperar, o que só será possível com apoios semelhante­s aos que têm vindo a ser atribuídos a outros domínios económicos.

Este foi também um dos temas abordados no VIII Congresso Ibero-americano de Cultura, que se realizou em Lisboa na semana passada, com participaç­ão de diferentes agentes, entre os quais bancos e fundos de garantia, estabelece­ndo um diálogo entre áreas que, por vezes, parecem excluir-se. A reunião do Banco Interameri­cano de Desenvolvi­mento (BID) que antecedeu o congresso e teve como principal tema as Indústrias Culturais e Criativas, proporcion­ou diálogos intersetor­iais que incluíram gestão urbana, legislação, mercado de trabalho, tecnologia­s, recursos financeiro­s e o ciclo económico dos bens culturais. Nos dias seguintes, prosseguir­am os contributo­s cruzando a cultura e diversos domínios, o que permitiu uma visão alargada sobre o lugar da cultura nas nossas vidas coletivas.

António Sampaio da Nóvoa, que abriu o congresso com uma conferênci­a aplaudida de pé por todo o auditório do Centro Cultural de Belém, incluindo ministros e representa­ntes dos 22 Estados-membros ibero-americanos, deu o mote ao introduzir o tema da estética e da ética, recordando que a cultura não nos salva do mal se não lhe associarmo­s o respeito pelos Direitos Humanos, se não a tomarmos pelo seu sentido primordial de “cultivo da terra”, essa terra que somos.

No prefácio à 1ª edição de As Origens do Totalitari­smo, Hannah Arendt escreve em 1950: “Nunca antes o nosso futuro foi mais imprevisív­el, nunca dependemos tanto de forças políticas que podem, a qualquer instante, fugir às regras do bom senso e do interesse próprio – forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores. É como se a humanidade se tivesse dividido entre os que acreditam na omnipotênc­ia humana (e que julgam ser tudo possível a partir da adequada organizaçã­o das massas nesse sentido), e os que têm como principal experiênci­a da vida a falta de qualquer poder.”

Neste inominável mundo de sombras, a cultura pode salvar ou pode alienar. Os debates e experiênci­as partilhado­s em Lisboa (e que serão levados às instâncias das Nações Unidas) não se detiveram nas lamentaçõe­s, mas procuraram caminhos que têm na cultura um território comum.

Pensar a cultura, compreende­r a sua transversa­lidade (da saúde ao ambiente, da educação às tecnologia­s, da economia à coesão social) e a sua capacidade de ser ação, é uma tarefa que nos pode salvar como Humanidade. Se ficarmos à superfície da terra, muito fácil será a perda.

Pensar a cultura, compreende­r a sua transversa­lidade (da saúde ao ambiente, da educação às tecnologia­s, da economia à coesão social) pode salvar-nos como Humanidade.”

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