Jair Bolsonaro é o pai das rachadinhas
Áudios divulgados pela imprensa revelam que o milionário esquema de desvio de salários de falsos assessores para os bolsos do clã presidencial teve envolvimento, por décadas, do hoje chefe de Estado.
Os métodos no gabinete do deputado Bolsonaro incluíam ainda demissões e recontratações de assessores no mesmo dia. dnot@dn.pt
Jair Bolsonaro está envolvido no esquema milionário de desvio de salários de falsos assessores, vulgarmente conhecido como “rachadinha”, que levou o primogénito Flávio Bolsonaro a ser acusado de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. Um áudio de uma cunhada do presidente da República do Brasil indica que o então deputado federal não só sabia como, muito provavelmente, liderava o esquema.
Na gravação em causa, divulgada em reportagem de segunda-feira, dia 5, pelo portal UOL, a fisiculturista Andrea Siqueira Valle, irmã da segunda mulher de Bolsonaro, diz que um irmão dela, também cunhado de Bolsonaro, foi demitido do gabinete por se recusar a devolver a maior parte do seu salário de assessor ao hoje presidente da República.
“O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha de ser devolvido, entendeu? Tinha de devolver 6 mil reais, ele devolvia 2 mil, 3 mil. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo’.”
O esquema de rachadinha funciona de forma simples: um governante nomeia assessores fantasma, normalmente familiares ou amigos próximos, que transferem a maior parte dos seus salários para o empregador; o falso assessor ganha uma quantia pequena sem precisar de trabalhar; e o governante ganha uma quantia grande, que lhe multiplica o vencimento; só perde o contribuinte, uma vez que o dinheiro desviado é público.
Entretanto, áudios, também revelados pelo UOL, da mulher do ex-polícia Fabrício Queiroz, o amigo de décadas de Jair Bolsonaro e ex-assessor do seu primogénito Flávio Bolsonaro, encarregado, segundo as investigações, de recolher e distribuir o dinheiro dos assessores pela família, dão a entender, mais uma vez, que o presidente era o líder do grupo.
Márcia Aguiar conta por telefone à enteada Natália Queiroz, filha de uma primeira relação de Fabrício, que o “01”, referindo-se a Jair Bolsodato, naro, não vai deixar que o intermediário continue a operar.
O áudio é de outubro de 2019, quase um ano depois de o esquema de desvio de dinheiro público ter sido revelado. Na altura, Márcia e Natália criticam o marido e pai por continuar a agir como intermediário das operações ilegais. “Ele é burro”, queixa-se Natália.
“É chato também, concordo. É que ainda não caiu a ficha dele que agora voltar para a política, voltar para o que ele fazia, esquece. Bota anos para ele voltar. Até porque o 01, o Jair, não vai deixar. ‘Tá entendendo? Não pelo Flávio, mas enfim não caiu essa ficha não. Fazer o quê? Eu tenho de estar do lado dele”, afirma Márcia.
Queiroz, peça central do esquema, esteve escondido da polícia por meses – foi encontrado, finalmente, numa propriedade de Frederico Wassef, advogado da família Bolsonaro, e preso, antes de ser colocado em liberdade novamente.
O facto de Queiroz ter efetuado 27 depósitos em contas de Michelle Bolsonaro, atual primeira-dama e madrasta dos quatro filhos homens do presidente, continua, entretanto, sem explicação. Jair Bolsonaro interrompeu, irritado, cinco entrevistas com jornalistas depois de ser questionado sobre esses depósitos.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania) apresentou no próprio dia das reportagens um requerimento para criar uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) dedicada a investigar o caso. Como a Constituição não permite que o presidente da República seja responsabilizado, durante o seu manpor atos estranhos ao exercício das suas funções, o parlamentar sustenta no pedido que a CPI teria o objetivo de apurar factos de “notável interesse público” e não de responsabilizar Bolsonaro por eventuais descobertas.
O envolvimento de Bolsonaro no esquema das rachadinhas, que os áudios agora revelados provam, sempre foi tido como muito provável. Uma análise, feita em julho do ano passado pelo jornal Folha de S. Paulo, a documentos dos 28 anos em que Bolsonaro foi deputado federal, de 1991 a 2018, mostrava uma intensa e incomum rotatividade salarial dos seus assessores, atingindo cerca de um terço das mais de cem pessoas do seu gabinete nesse período.
Por exemplo, a assessora Marselle Marques ficou cerca de um ano e meio no gabinete de Bolsonaro, em 2004 e 2005, primeiro a ganhar 261 reais, três meses depois a auferir 6011 e no trimestre seguinte 90% menos. Posteriormente, ela foi nomeada para o gabinete de Flávio Bolsonaro, à época deputado estadual do Rio de Janeiro, razão pela qual está sob investigação das autoridades.
Walderice Santos da Conceição, por outro lado, exerceu 26 funções diferentes no gabinete de Bolsonaro em 15 anos. Apesar de assessora do então deputado em Brasília, ela foi apanhada por repórteres do jornal Folha, ainda durante a campanha eleitoral de 2018, a vender açaí numa estância balnear do Rio de Janeiro, onde o hoje presidente tem casa de férias, a milhares de quilómetros da Câmara dos Deputados.
Os métodos no gabinete do deputado Bolsonaro incluíam ainda demissões e recontratações de assessores no mesmo dia, uma prática que acabou proibida pela Câmara dos Deputados sob o argumento de ser lesiva aos cofres públicos.
O senador Flávio Bolsonaro é o membro do clã presidencial, de facto, já sob investigação das autoridades, por causa do esquema de corrupção milionário da rachadinha.
Segundo as investigações, os recursos recebidos dos seus assessores por mais de dez anos eram depois lavados numa loja de chocolates no Rio, cuja venda as autoridades suspeitam de que terá servido para Flávio pagar parte da entrada da luxuosa mansão que comprou em Brasília já neste ano por perto de um milhão de euros. As investigações ao primogénito de Bolsonaro, no total, envolvem 39 imóveis.
Uma reportagem do portal UOL do ano passado, entretanto, já revelava indícios de que o esquema da rachadinha também ocorria nos gabinetes do pai, Jair, quando este era deputado federal, e do irmão, o vereador carioca Carlos, depois de verificar 607 552 operações bancárias de cem suspeitos de participação naqueles crimes.