Sites no Canadá alojam rede de notícias falsas portuguesa
Vários sites sediados no Canadá alojam fake news sobre a política portuguesa. Depois, vários grupos no Facebook, com milhares de membros, divulgam-nas. O criador desta operação explica-nos porquê.
Investigação sobre a origem do boato (entre outros) do relógio de luxo de Catarina Martins. É uma página de fake news dirigida por um industrial de têxteis do norte com muitas convicções políticas.
Há uma série de imagens a circular rapidamente nas redes sociais. Numa delas, Catarina Martins tem um círculo desenhado à volta do pulso e uma caixa no lado esquerdo que explica uma parte da imagem que não se vê – um suposto relógio. Diz a mesma imagem que é um relógio de luxo suíço com o valor de 20,9 milhões de euros. A acusação vem em letras garrafais: “A maior fraude da política portuguesa depois de António Costa.” O relógio não se vê, o preço é absurdo. A informação, propriamente dita, é “absolutamente falsa”, contrapõe o BE. Mas a imagem teve 875 partilhas só da primeira vez que foi publicada no Facebook.
Outras se seguiram, como é hábito nas coisas que se tornam “virais”, chegando a milhares de pessoas. A réplica nas redes sociais é a norma. A repetição faz-nos acreditar mesmo numa informação que desconfiamos ser falsa. A psicologia já estudou esse “efeito de verdade ilusória”. Se ouvirmos várias vezes uma mentira, somos tentados a dar-lhe plausibilidade. E 63% dos portugueses dizem receber a sua informação nas redes sociais. Se Platão escrevesse hoje A Alegoria da Caverna, poderia chamar-se alegoria das redes.
Mas as redes sociais são apenas o meio de difusão – rápido, eficaz e gratuito. Antes, alguém teve de criar a imagem e partilhá-la pela primeira vez. O DN tentou reconstituir esse trabalhoso processo. E descobriu uma mão-cheia de sites portugueses que publicam este tipo de imagens ou textos. Estão todos sediados no Canadá. E partilham o mesmo IP, o protocolo de internet que permite saber qual é a identidade única destas páginas. Ao longo de vários dias, seguimos as pistas e encontrámos uma empresa do norte especializada em “criação e manutenção de sites, reestruturação de site já existente, desenvolvimento de páginas num ambiente profissional e atraente, otimização para motores de busca: Search Engine Marketing (SEM) e Search Engine Optimization (SEO), criação de imagens e banners, criação e manutenção de páginas em redes sociais”. Chama-se Forsaken e o seu dono apoia Trump e Bolsonaro. E foi ali que foi criada a imagem do relógio de luxo que Catarina Martins não usa, mas que para muitos portugueses é uma “verdade” servida no Facebook.
Esta é uma notícia falsa criada em Portugal, mas a ideia foi importada. No Brasil, pelas mesmíssimas redes sociais, circulou uma foto igual, mas nela, em vez de Catarina Martins, figurava Fernando Haddad, o candidato do PT às presidenciais. A marca do relógio é a mesma, o preço está em reais, não em euros. O caso ficou conhecido como “a fake news do relógio”. A queixa do candidato cai em saco roto: “Circulam na internet, por impulso do meu adversário, mentiras sobre mim. Segundo Bolsonaro, esse relógio vale 400 mil reais. Não tenho carro em meu nome e virei proprietário de um Ferrari.”
Em Portugal, a imagem foi publicada no site Direita Política. É uma entre centenas de outras, numa página que produz muito. Ali, os visados são, só para falar nos mais recentes: João Galamba, João Gomes Cravinho, Maria Flor Pedroso, Ricardo Costa, António Costa, Azeredo Lopes, Jerónimo de Sousa… A líder do Bloco fez queixa e pediu a abertura de um inquérito-crime. “A informação de que Catarina Martins usaria um relógio de 21 milhões de euros, além de absurda, era objetivamente falsa. Por ser falso o conteúdo e difamatória a sua reprodução, a conta foi imediatamente denunciada”, explica o gabinete de imprensa do BE.
Noutro dos casos que pesquisámos, o da divulgação de uma fotografia em que falsamente é indicada a presença de Lucília Gago, a nova procuradora-geral da República, num jantar em casa de José Sócrates, ainda não foi possível saber se foi aberta uma investigação judicial. A fotografia foi divulgada a partir de um site de um cliente da Meo, localizado na Mouraria, em Lisboa. Chegou a ser divulgado na página do PSD de Serpa, no Facebook. Um dia depois, a mesma página lamentava o que fizera: “O PSD de Serpa partilhou uma notícia de um blogue que se revelou ser falsa. Por isso pedimos as nossas desculpas por ter partilhado informação que neste momento continua a circular e a ser notícia nas redes sociais.” Aquilo a que, até no pedido de desculpas, o partido chama de “notícia” é o que torna este terreno movediço. Muitos utilizadores das redes sociais não parecem preocupar-se com o que separa as notícias (informação verificada, sujeita a regras) das simples alegações falsas. E é esse desconhecimento que abre o caminho às campanhas baseadas em mentiras.
No Direita Política, por vezes, não é só de uma mentira que se trata – nem de notícias apenas. A linguagem é desabrida: “bufo”, “corrupto”, “aberração”, são alguns dos adjetivos escolhidos para descrever os alvos. Mas desengane-se quem pensa que este é apenas um site que exibe convicções, ainda que agressivas. Este é o ponto de partida de um mecanismo, pensado,
de difusão de mentiras pelos meios onde, hoje, a informação mais circula.
Menos conhecida é a forma como todo o processo funciona. O site Direita Política tem, como todos os endereços online, um “protocolo de internet” que o identifica como uma morada. O deste site é 198.50.102.106. A partir do IP é possível saber que a página está registada no Canadá, em H3E Montreal, Quebec, na empresa iWeb Technologies. Com outra ferramenta disponível na internet, o who is (quem é), é possível saber mais. O IP do Direita Política é o mesmo de outros sites do género (AVoz da Razão, Não Queremos Um Governo de Esquerda em Portugal,Video Divertido, Aceleras). E há uma empresa concreta a partilhar o mesmo IP. É uma empresa de informática de Santo Tirso, a Forsaken.
Criada em 2014, a empresa tem um só dono: João Pedro Rosas Fernandes. Com o e-mail do “dono do registo” destas páginas – a que o DN teve acesso, mas não divulga –, as páginas foram registados no Canadá, com o mesmo IP. Um desses sites – chamado Vídeo Divertido – tem, além do nome de João Fernandes como dono, a menção a uma outra empresa, a Portugal na Web. João Fernandes é um dos administradores do grupo com esse nome no Facebook. Todos os sites e grupos de notícias falsas, incluindo o Direita Política, estão ligados a este Portugal na Web na sua página da internet, no Facebook, e a João Fernandes.
João Fernandes, que é também sócio de duas indústrias têxteis, a EMPA e a Larmoderno, além da Forsaken, aceitou falar com o DN por e-mail. Quando lhe referimos a imagem do relógio e de Catarina Martins, prontificou-se a corrigir. “Não percebo nada de relógios, por esse motivo troquei agora mesmo a imagem que estava a ilustrar o artigo. Creio que a pessoa que editou o artigo encontrou na internet essa imagem e inseriu-a para ilustrar o artigo.” Para o dono da Forsaken, tudo aquilo que faz é justificado pelas suas convicções. “Descontente com a falta de contraditório que existia na comunicação social”, resolveu criar, com a “colaboração e intervenção de várias pessoas”, esta página política, “mas também de divulgação de atos de corrupção”. “Pessoalmente tenho como referências os jornalistas Hernâni Carvalho e Ana Leal, o falecido Medina Carreira, Paulo de Morais e, em parte, o trabalho de alguns juízes e procuradores e a ideia será sempre de divulgar atos criminosos, de má gestão pública ou simplesmente denunciar aquilo que não só eu mas toda a equipa do Direita Política entende que não é correto”, justifica.
Na sua opinião, nada disto merece o nome de “notícias falsas”. “É comum sempre que divulgamos alguma notícia sobre alguma figura pública que está envolvida em corrupção aparecerem algumas pessoas nas redes sociais a tentar desmentir os factos, dizendo que são fake news. Fazem o mesmo em todos os jornais online. Relativamente a isso não dou qualquer importância. É possível que aconteça termos uma notícia que não seja 100% precisa”, explica.
João Fernandes é “desde o primeiro momento” um apoiante de Trump e de Bolsonaro, “não só pelos seus ideais mas sobretudo por lutarem contra o politicamente correto e contra os interesses instalados”. “Quer se goste ou não, Trump e Bolsonaro têm um projeto político credível, que sempre seguiu a mesma linha e que não se têm deixado influenciar pelo momento ou pela pressão mediática. Têm frases que chocam por vezes, sim. Têm defeitos? Com certeza. Mas, como está a verificar-se com Donald Trump, a maioria dos argumentos usados pela esquerda de modo a influenciar as pessoas foram desmentidos pela realidade. O presidente dos EUA não é o bicho-papão.”
Mas, ao contrário do que se provou ser comum, tanto nos EUA como no Brasil, João Fernandes garante que não trabalha para nenhuma organização política ou económica. “Já ajudei na criação de muitos sites, maioritariamente de empresas, mas nunca colaborei com nenhum encomendado por pessoas ligadas ao meio político.”
Por isso, garante, não tem “nenhum site criado a pedido de outras pessoas ou organizações”. “Nenhuma pessoa trabalha no Direita Política. Existe a colaboração de mais de uma dezena de pessoas, de forma totalmente informal, para que sejam dadas resposta aos e-mails para criar artigos, notícias, conteúdos, imagens e para moderar o site e as redes sociais.” Os candidatos a colaborar aparecem-lhe aqui, e no Brasil, onde o site tem uma parte da sua audiência.
Por tudo isto, a preocupação com o que se passa no Brasil, ou nos EUA, ou em vários países europeus, pode não estar muito distante de Portugal. Na Itália e na Alemanha, as notícias falsas já são crime. Decorrem investigações sobre interferências concretas em eleições – empresas que patrocinam redes de fake news pró-Bolsonaro no WhatsApp, no Brasil, ou que usam ilegalmente os dados de milhões de utilizadores do Facebook para favorecer o brexit e a eleição de Trump.
Mark Zuckerberg já pediu desculpas por isso mesmo, no Parlamento Europeu: “Também se tornou evidente que nos últimos anos não fizemos o suficiente para evitar que as ferramentas que construímos fossem usadas de forma errada. Quer seja no caso de fake news, interferência estrangeira em eleições ou o uso indevido de dados pessoais de cada um, não tivemos uma visão suficientemente abrangente da nossa responsabilidade. Isso foi um erro, peço desculpa.” Mas a prática veio para ficar. Tem adeptos e resultados. Os cidadãos continuarão a partilhar as suas convicções, certas ou erradas. E o debate público, em Portugal, também já mudou.