Diário de Notícias

Ora dá cá um

- João Taborda da Gama

Talvez seja isto o que escapou ao Professor poliamor e aos seus defensores e críticos, é que a relação entre avós e netos é a mais especial que pode existir, e basta os pais não fazerem asneiras para não se pôr a questão.

Depois do grande holocausto do beijinho, iniciado na década de oitenta pelo jet seis lisboeta, e depois copiado por todos aqueles que almejavam lá chegar, aterrando de copo na mão e pernas entrelaçad­as nas páginas da Olá Semanário, quiçá numa festa em tafetá no T-Clube, ou bronzeados no Ancão, temos agora o professor poliamor do Prós e Contras a querer cortar no grande maná de beijinhos que é na repenico entre avós e netos. Mas, antes dos netos, vamos aos betos, porque foram eles que começaram com isto tudo de acabar com o beijo.

Talvez por quererem criar um traço identitári­o, talvez para não estragar a maquilhage­m, talvez por medida de eficiência de quem frequentav­a muitos (imeeeensos) eventos sociais com muita gente, perdia-se muito tempo no chuac duplo, talvez porque um se enganou e depois os outros começaram todos a imitar, porque são muito disto de se imitarem uns aos outros. Talvez por isto, talvez por outras coisas, primeiro cortaram o beijo a metade, um dia acordámos todos e metade do mundo, às vezes mais de metade, às vezes menos de metade, mas em média metade, passou a dar só um beijo. Num primeiro momento, deixavam pendurados os que iam à dobra, mas rapidament­e perceberam que o ficar pendurados podia ser usado contra eles por terem causado ao outro o desconfort­o do penduranço, e aí desenvolve­ram apuradas técnicas de fuga relâmpago depois do primeiro beijo, empurrando o interoscul­ador para trás com firmeza não fosse ele querer o repeteco. E depois de o reduzir a metade, aboliram mesmo o beijo em si. Sabemos que o beijo social tem uma técnica muito própria e que é leve a linha entre beijar sem beijar e não beijar beijando, que numas pessoas se usa mais canto de boca do que noutras, que pode ter ou não mão no ombro, nuances, subtilezas que o instinto ensina e a vontade aguça. Mas há pontos seguros: a gente não se atira de lábios paralelos à face, mas também não basta esfregar a orelha na têmpora, ou nas suíças, e fazer um beijo oral, quero dizer sonoro, e isso ser considerad­o um beijo. E o jet seis institui muito o beijo-turra, sem cara, quanto mais lábios.

Mas adiante, até porque por pressão social não sou imune ao unibeijo, e de volta ao segundo massacre do beijo, proposto agora em direto na TV, que é beijo decorrente do não te esqueças de cumpriment­ar as pessoas, dá um beijinho à vó. A questão é debatida lá fora, não veio da cabeça do Professor poliamor. Em 2014 a coordenado­ra do Sex Education Forum do Reino Unido terá levantado o tema, e mesmo nesses povos menos adeptos do beijo foi um festival de críticas. A questão não é totalmente tola (consentime­nto sobre o corpo a todo o tempo é um tema muito importante e haverá formas inteligent­es de a ensinar, inteligent­es repito), mas irrita, e irrita sobretudo porque mistura muitas coisas que não são para misturar (ligar o cumpriment­o de normas sociais com avós ao abuso sexual é absurdo; e parte de uma visão binária de liberdade absoluta vs. abuso do próprio corpo, baseado no instinto, e sem o reconhecim­ento do outro. A ruga e a verruga, a dentadura do avô que faz clac, a tia solteira que se baba, tudo são barreiras que o instinto ergue em todos nós, quanto mais numa criança, e que há um nível de coerção social que é, no final dos dias, melhor para todos. Entre explicar que a tia Zé que está no lar, e que se baba, e pode cheirar a urina, gosta de estar de mão dada com a sobrinha bisneta, que não sente uma mão que não seja de uma tratadora profission­al há 15 dias, que as vidas são complicada­s e ninguém tem passado pela clínica, iam passar até tinham mandado mensagem, mas com a greve do metro e o trânsito não deu, e que por isso deve fazer um esforço, dar-lhe a mão, dar um beijinho, é diferente de pegar numa criança a espernear pelos cabelos e esfregar-lhe a boca na cara do Tio António (pode ver-se uma análise ponderada aqui).

Mas o essencial é outra coisa. Na pintura Velho com o Seu Neto (Ritratto di Vecchio con Nipote), do Ghirlandai­o, 1490, que está no no Louvre, um jovem de cerca de 10 anos está ao colo de um velho, ambos de vermelho, o miúdo tem a mão no peito do homem, de lado, e olham-se, o homem velho com um olhar terno e melancólic­o, o miúdo curioso, inquisitiv­o, sereno mas não absolutame­nte (será a mãe do miúdo a Jovem retratada por Ghirlandai­o que está na Gulbenkian?). O nariz bulboso do avô, deformado, está lá, e é para ele que olha também o neto. Não é o rinofima que tira a beleza à composição porque a torna mais real, e só há beleza na realidade, e na realidade na realidade só há beleza entre avós e netos (Pedro Paixão captura isto na perfeição, não me recordo onde).

E talvez seja isto aquilo que escapou ao Professor poliamor e aos seus defensores e críticos, é que a relação entre avós e netos é a mais especial que pode existir, e basta os pais não fazerem asneiras para não se colocar a questão de alguém ser ou não obrigado a dar beijos. E se dúvidas houvesse sobre a santidade dessa relação basta regressar como sempre ao sítio onde estão todas as respostas a todas as perguntas fundamenta­is, e ver como é que morre Vito Corleone. No jardim, no tomatal, depois de brincar com o neto que rega as plantas com uma bisnaga, depois de o assustar com dentes de monstro feitos de casca de laranja, de o perseguir, Vito que já não assusta ninguém, o neto que ainda não assusta ninguém. É precisamen­te por serem as idades em que ninguém assusta ninguém que o amor ainda e já é possível.

Advogado

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