Diário de Notícias

Portugal, a escravatur­a e o “historicam­ente correto”

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Não obstante o que afirma uma antiga tradição de índole patriótica, Portugal não foi um pioneiro no combate ao tráfico de escravos. Foi, bem ao invés, um dos países ocidentais que mais tarde decretaram a abolição do ‘odioso comércio’ e um dos que durante mais tempo permanecer­am maioritari­amente estanques ou refratário­s às ideologias e políticas abolicioni­stas. (...) Um país que foi pioneiro do tráfico transatlân­tico da escravatur­a e que administro­u o Brasil e Angola, respetivam­ente os maiores importador e exportador da escravaria, ou deixou por muito tempo quase em branco essa página da sua história ou, o que é pior, preencheu-a com uma manipulaçã­o da verdade, com uma vulgata do processo abolicioni­sta, assente numa versão construída a partir de um punhado de episódios (…) talhados à medida para fornecer uma imagem edificante do zelo humanitari­sta português. A coberto dessa imagem, o país reservou para si o papel mistificad­or de pioneiro do antiescrav­ismo.”

Estes excertos pertencem a um importante livro da historiogr­afia portuguesa sobre escravatur­a (ou escravismo): Os Sons do Silêncio, de João Pedro Marques, de 1999. O título refere o silenciame­nto do papel de Portugal no tráfico transatlân­tico de africanos, que a ver do autor se deveu ao facto de a “teoria histórica” construída no país “nunca se ter emancipado do quadro de referência do nacionalis­mo”, resultando “na absoluta similitude entre os discursos histórico e político sobre tráfico de escravos”. Ou seja, quem pretendeu narrar o papel português na escravidão dos africanos fê-lo sempre na perspetiva da justificaç­ão e da “honra nacional” – a ponto de, frisa Marques, se “desenvolve­r o tema da benignidad­e da escravatur­a portuguesa, por contraste com a crueldade de tratamento infligido aos escravos ingleses”.

Ora é decerto com surpresa que o leitor não especialis­ta, que esteja a acompanhar nos jornais o debate desencadea­do na esfera pública a partir de abril de 2017 – a propósito da visita de Marcelo ao antigo entreposto de escravos de Gorée, no Senegal, e das afirmações que aí fez sobre o pioneirism­o abolicioni­sta português –, reconhece no autor das citações o seu mais formidável contendor. Será o mesmo João Pedro Marques que desde o início do debate assinou dezenas de artigos de opinião (três só este mês) verberando os “flagelador­es de Portugal”, os “espíritos politicame­nte corretos” que querem fazer crer aos portuguese­s que “os seus antepassad­os eram invulgarme­nte nocivos e cruéis”, e que chegou mesmo a negar que o alvará abolicioni­sta de Pombal de 1761 tenha sido “mitificado”?

Quem agora se encarniça em corrigir toda e qualquer pessoa que afirme ter Portugal sido o recordista do tráfico transatlân­tico, continuand­o a ser por ele grandement­e responsáve­l em pleno século XIX, já após a independên­cia do Brasil (1825), poderá ser o historiado­r que em 2001 garantia ter o tráfico atlântico para o Brasil ressurgido na década de 1830, afiançando estarem os portuguese­s “no cerne desse ressurgime­nto”? Explica esse João Pedro Marques ao de agora: “Não só porque eram eles os principais negreiros do Brasil (...) mas também, e sobretudo, porque se recorria de forma generaliza­da ao chamado embandeira­mento (...). O pavilhão português voltava a ter grande procura e o grosso dos empreendim­entos negreiros fazia-se agora com a conivência das autoridade­s portuguesa­s.” Essa conivência não se limitava à “venda” da bandeira; tinha que ver também com a de escravos nas possessões africanas de Portugal, que mesmo sendo a partir da década de 30 formalment­e proibida continuava a fazer-se com a cumplicida­de – e benefício – das autoridade­s portuguesa­s. E o JPM de 1994 concluía: “O fluxo negreiro entre a África meridional portuguesa e o Brasil – de longe o maior sorvedouro de africanos, absorvendo mais de 80% da importação total – manteve-se em pleno até 1850.”

Toda a gente pode mudar de opinião. Sucede que nem João Pedro Marques assume ser o caso nem, como o próprio adverte, o papel de Portugal na escravatur­a dos africanos pode ser matéria de opinião. E é mesmo isso que a maioria dos que JPM acusa de “ignorância”, “preconceit­os ideológico­s” e de “sanha acusatória” defendem: que se conheçam e divulguem os factos. E que os viés justificat­ivos e nacionalis­tas, que parecem ter infetado alguém que tanto fez por destruí-los, deixem de predominar na forma como a maioria dos portuguese­s olha para a história.

Jornalista

Que os viés justificat­ivos e nacionalis­tas deixem de predominar na forma como a maioria dos portuguese­s olha para a história.

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