Diário de Notícias

Nanette ou o fim da comédia

- Por Maria João Caetano Jornalista

Há um momento, a meio do espetáculo de stand-up comedy Nanette, em que as gargalhada­s deixam de se ouvir. Nem um aplauso. Nem sequer um daqueles risos envergonha­dos. Nada. Só o silêncio na enorme sala da Ópera de Sydney enquanto Hannah Gadsby, de 40 anos, conta como foi crescer na Tasmânia onde 70% das pessoas achavam que a homossexua­lidade era não só um pecado como deveria ser considerad­a um crime – como aconteceu até 1997.

Conta como disse à mãe que era lésbica mas nunca, até agora, teve coragem de contá-lo à avó porque, apesar de fazer espetáculo­s onde fala abertament­e sobre o assunto, no seu íntimo continua a sentir vergonha. Conta como foi violada por duas vezes e como foi espancada por um homem por ser, como ele lhe chamou, “uma aberração” e “uma paneleira de merda”. Conta como construiu uma carreira “à base do humor autodeprec­iativo”, humilhando-se voluntaria­mente em público, e como não quer continuar a fazê-lo. “Vou deixar a comédia”, anuncia, sabendo que é um paradoxo irresolúve­l e até risível isso de se anunciar que se vai deixar a comédia a meio de um espetáculo de stand-up comedy.

“Quando saí do armário, a única coisa que sabia fazer era ser invisível e odiar-me. Demorei dez anos a perceber que podia ocupar um espaço no mundo mas, nessa altura, já o tinha transforma­do em piadas, como se não fosse nada de importante. Agora, preciso de contar a minha história como deve ser”, explica. Não em forma de piada. Porque “o riso é só o mel que adoça o remédio amargo”. O riso não é a verdadeira cura.

E, já que estamos a ser sinceros, vamos lá falar de preconceit­os e misoginia e machismo e de todas as outras mulheres, lésbicas ou não, que desde que o mundo é mundo são alvo de abusos vários. Nos momentos em que este ainda é um espetáculo de stand-up comedy, Hannah Gadsby é uma das mais corrosivas e certeiras humoristas que anda por aí e não é por acaso que Nanette se estreou em 2017 e ganhou prémios em vários festivais de humor até, em junho passado, chegar à Netflix e se tornar um verdadeiro fenómeno global. Nanette é também uma lição de alguém que domina perfeitame­nte a arte de comédia e que decide desconstru­í-la ali, à nossa frente. Pôr-nos a rir desbragada­mente . E depois calar-nos.

Na sexta-feira, em Montreal, Hannah Gadsby apresentou Nanette pela última vez. Ou pelo menos é o que ela diz. Se vai deixar a comédia? Isso não é importante. “Não há nada mais forte do que uma mulher destruída que se reconstrui­u”, avisa ela. Essa é a grande lição deste espetáculo. O que nos faz continuar, o que nos permite sobreviver é a ligação aos outros. Essa é a sua última palavra em palco: connection. Como quem diz: amor.

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