Diário de Notícias

Prisioneir­os da dor

- POR PETER SINGER Professor de Bioética da Universida­de de Princeton

No mês passado, um tribunal egípcio condenou a inglesa Laura Plummer, uma empregada do comércio de 33 anos, a três anos de prisão por contraband­o de 320 doses de tramadol para o país. Tramadol é um opiáceo sujeito a receita médica, disponível no Reino Unido para alívio da dor. É proibido no Egito, onde há altos níveis de adição à substância. Plummer disse que levava o medicament­o para o seu namorado egípcio, que sofre de dor crónica, e que não sabia que estava a violar a lei egípcia.

A comunicaçã­o social do Reino Unido tem estado cheia de histórias compassiva­s sobre a situação de Plummer, apesar de esta ter levado uma quantidade do medicament­o superior àquela que um médico do Reino Unido pode receitar. No entanto, independen­temente dos aspetos positivos e negativos da condenação e da sentença de Plummer, o caso traz à luz do dia um problema com ramificaçõ­es muito maiores.

Em outubro passado, a Comissão Lancet sobre Cuidados Paliativos e Alívio da Dor emitiu um impression­ante relatório de 64 páginas argumentan­do que aliviar a dor severa é um “imperativo global de saúde e equidade”. A comissão não é a primeira a fazer tal reivindica­ção, mas o seu relatório apresenta abundantes provas que demonstram a seriedade do problema. Todos os anos, 25,5 milhões de pessoas morrem em agonia por falta de morfina ou de um analgésico igualmente forte. Apenas 14% dos 40 milhões de pessoas que necessitam de cuidados paliativos os recebem.

O relatório começa com o relato de um médico sobre um homem que sofre de dores atrozes devido a um cancro do pulmão. Quando o médico lhe deu morfina, ele ficou espantado com a diferença que sentiu, mas quando o doente regressou no mês seguinte o serviço de cuidados paliativos tinha ficado sem morfina. O homem disse que voltaria na semana seguinte com uma corda, se não conseguiss­e os comprimido­s enforcar-se-ia na árvore em frente à janela da clínica. O médico comentou: “Eu acredito que ele estava a falar a sério.”

Os cidadãos dos países ricos estão habituados a ouvir que os opiáceos são muito fáceis de obter. Na verdade, de acordo com dados do Órgão Internacio­nal de Fiscalizaç­ão de Estupefaci­entes e da Organizaçã­o Mundial da Saúde, o acesso a essas drogas é chocanteme­nte desigual.

Nos Estados Unidos, a quantidade de opiáceos disponívei­s – ou seja, drogas com efeitos sobre a dor semelhante­s aos da morfina – é mais do que três vezes maior do que a necessária para os doentes que precisam de cuidados paliativos. Na Índia, de onde era natural o homem que ameaçava enforcar-se, a oferta é apenas de 4% da quantidade necessária. Na Nigéria, é apenas de 0,2%. As pessoas nos EUA sofrem de excesso de prescrição de opiáceos, enquanto as pessoas nos países em desenvolvi­mento sofrem muitas vezes por défice de prescrição.

Embora sejam geralmente os pobres que não têm acesso a opiáceos, neste caso o principal problema não é o custo: as doses de morfina de libertação imediata, que não está sujeita a patente, custam apenas alguns cêntimos cada. A Comissão Lancet argumenta que um “pacote essencial” de medicament­os custaria aos países de baixos e médios rendimento­s apenas 0,78 dólares per capita por ano. O custo total de acabar com a “diferença na dor” e fornecer todos os opiáceos necessário­s seria apenas de 145 milhões de dólares por ano aos preços mais baixos do retalho (injustamen­te, os opiáceos são frequentem­ente mais caros para os países mais pobres do que para os mais ricos). No contexto das despesas globais de saúde, isso é uma ninharia.

As pessoas sofrem porque aliviar a dor não é uma prioridade de política pública. Existem três explicaçõe­s principais para isso. Para começar, a medicina está mais focada em manter as pessoas vivas do que na manutenção da sua qualidade de vida. E os doentes que sofrem alguns meses de agonia no final da vida muitas vezes não estão bem posicionad­os para exigir um melhor tratamento.

Em terceiro lugar, e talvez mais importante, está a opiofobia. O medo errado de que permitir que os opiáceos sejam utilizados nos hospitais irá alimentar o vício e o crime na comunidade levou a restrições rigorosas sobre o seu uso, e os clínicos não são treinados para os fornecer quando são necessário­s.

Embora os opiáceos possam ser prejudicia­is e aditivos, como demonstra a crise atual nos Estados Unidos, o facto de que uma coisa possa ser perigosa não é motivo suficiente para impor restrições extremas ao seu uso clínico. Os riscos são justificad­os quando os benefícios esperados superam claramente os danos prováveis. Os decisores políticos no mundo em desenvolvi­mento estão fazer a opção de impor o que a OMS chama “regulament­os excessivam­ente restritivo­s” sobre a morfina e outros medicament­os paliativos essenciais. O acesso baixo ou nulo não se justifica nem médica nem moralmente.

Delinear um sistema que forneça acesso adequado à morfina sem encorajar o excesso de prescrição ou o desvio de drogas para o mercado negro é complicado, mas não impossível. A Comissão Lancet chama a atenção para o estado indiano de Kerala, onde voluntário­s treinados estão no centro dos cuidados paliativos comunitári­os, apoiados pela colaboraçã­o internacio­nal com a OMS, investigad­ores universitá­rios e organizaçõ­es não governamen­tais. Não há incentivo para prescrever demais e não há provas de desvio de opiáceos.

Outro modelo digno de estudo, diz a comissão, é o Uganda, onde um albergue gerido por uma ONG fornece o sistema público nacional de saúde com morfina oral.

O contraband­o de analgésico­s de Laura Plummer foi indubitave­lmente uma tolice, a sua experiênci­a numa prisão egípcia será uma tragédia pessoal. Mas se a sua história é verdadeira, ela também é vítima das restrições excessivam­ente rígidas aos opiáceos que impediram o seu namorado de obter tramadol legalmente.

O caso de Plummer sublinha, assim, uma desgraça maior: a de que tantos cidadãos de países em desenvolvi­mento vejam negado o alívio efetivo da dor por parte dos governos devido à opiofobia. Isso não é apenas uma tolice, nas palavras da Comissão Lancet, é também uma “falha médica, de saúde pública e moral e uma fraude da justiça”.

A comunicaçã­o social do Reino Unido tem estado cheia de histórias compassiva­s sobre a situação de Laura Plummer, apesar de esta ter levado uma quantidade do medicament­o (tramadol) superior àquela que um médico do Reino Unido pode receitar

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal