Diário de Notícias

Enfermeiro­s fogem dos hospitais para centros de saúde

Fuga de centenas de profission­ais põe em risco consultas, internamen­tos e urgências de especialid­ades nos maiores hospitais. Do grupo do Santa Maria saíram 16 especialis­tas de ginecologi­a e obstetríci­a, o que já está a afetar consultas de IVG, salas de pa

- PEDRO VILELA MARQUES

Administra­ções hospitalar­es estudam mudanças em consultas, internamen­tos e urgências de especialid­ades

Centenas de enfermeiro­s de norte a sul do país estão a trocar os hospitais por lugares em centros de saúde, o que está a causar problemas nos serviços. Profission­ais em que se incluem muitos especialis­tas e que, segundo a Ordem dos Enfermeiro­s, vão ocupar a maioria das 774 vagas de um concurso aberto em 2015 para as administra­ções regionais de saúde, mas que só agora se concluiu. Um movimento que deixa em risco consultas, internamen­tos e urgências de especialid­ades de alguns dos principais hospitais. Só na área de saúde materna vão sair cerca de 40 profission­ais.

Segundo o que o DN apurou, o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN), que inclui Santa Maria e Pulido Valente, é um dos que mais sentirão o impacto destas saídas: só em ginecologi­a e obstetríci­a, garantem fontes da área, pelo menos 16 enfermeiro­s pediram para sair, entre os quais especialis­tas, o que já estará a afetar consultas como as de acompanham­ento das interrupçõ­es voluntária­s de gravidez (IVG – ver texto ao lado), as salas de partos e enfermaria­s.

Recorde-se que a área da ginecologi­a e obstetríci­a foi a mais afetada pelo protesto dos enfermeiro­s especialis­tas a meio do ano, quando se recusaram a prestar cuidados especializ­ados em protesto por melhorias salariais. “Nessa altura saíram muitos enfermeiro­s para o privado, portanto agora estamos a falar quase exclusivam­ente de pessoas que vão para os centros de saúde”, explica ao DN um enfermeiro de Santa Maria, que confirma que só em obstetríci­a se está a falar da saída de 11 enfermeiro­s, a que se junta ginecologi­a. Número sublinhado pelo movimento dos Enfermeiro­s Especialis­tas em Saúde Materna e Obstetríci­a, que fez um levantamen­to nacional das saídas nesta área. A mesma fonte adianta ainda que, além da consulta da IVG, e da sua transferên­cia para a Clínica dos Arcos, “uma das soluções estudadas foi encerrar a urgência de ginecologi­a e obstetríci­a e passar tudo para a urgência geral de adultos”.

Ainda nesta semana, a Ordem dos Enfermeiro­s recebeu uma outra denúncia sobre a saída de cerca de 20 enfermeiro­s dos vários serviços da pediatria de Santa Maria para os cuidados primários, o que colocaria mesmo em risco a manutenção do serviço de nefrologia pediátrica do hospital.

Em resposta ao DN, o Centro Hospitalar de Lisboa Norte avança que, neste momento, tem apenas “quatro pedidos de saída de enfermeiro­s especialis­tas de saúde materna e obstétrica e está a tomar todas as diligência­s para a sua substituiç­ão”. O CHLN adianta ainda que “até à data, o departamen­to está a dar resposta às necessidad­es e cuidados específico­s nesta área”. Quando questionad­a sobre informaçõe­s do Sindicato dos Enfermeiro­s Portuguese­s (SEP), que dão conta de um total de cerca de 80 saídas de enfermeiro­s do CHLN, não só em obstetríci­a, a mesma fonte reiterou a mesma resposta.

Mas um profission­al do maior hospital do país confirmou que “poderemos estar a falar desse número, de pelo menos 80 profission­ais”, lembrando que trabalham perto de dois mil enfermeiro­s em Santa Maria e Pulido Valente. Exemplos de norte a sul Ordem dos Enfermeiro­s, SEP e o movimento dos Enfermeiro­s Especialis­tas em Saúde Materna e Obstetríci­a garantem que os problemas se repetem por todo o país. “O concurso de 2015 teve um atraso brutal no seu desenvolvi­mento que culminou com a aceitação dos lugares apenas no final de novembro último. Os contratos individuai­s de trabalho ainda têm de dar tempo aos serviços, mas o grosso desses enfermeiro­s começa a sair agora, por coincidênc­ia numa altura em que os serviços estão com problemas e a gripe começa a aumentar”, explica Guadalupe Simões, dirigente do SEP, que avança que “estamos certamente a falar de pelo menos duas centenas de enfermeiro­s nestas condições”.

A ordem vai ainda mais longe e diz que a maioria das 774 vagas postas a concurso em 2015 foram ocupadas por enfermeiro­s dos hospitais. “Abriram concurso em que possibilit­aram às pessoas dentro do sistema consolidar a sua mobilidade e o que percebemos é que as vagas foram quase todas ocupadas por pessoas que já estavam dentro do sistema”, afirma a bastonária, Ana Rita Cavaco, que exemplific­a com alguns casos para provar que a situação existe de norte a sul: “Na ordem temos um caso, um membro do nosso conselho jurisdicio­nal que é enfermeiro no Instituto de Oncologia do Porto e vai tomar posse num centro de saúde. E isso está a repetir-se por todo o país, também sabemos de casos no Algarve, por exemplo.”

No Centro Hospitalar e Universitá­rio do Algarve, “os únicos dados verbalizad­os pela administra­ção são relativos aos 50 enfermeiro­s que vão contratar para tentar compensar o número de profission­ais que vão para os cuidados de saúde primários”, conta o presidente da secção sul da Ordem dos Enfermeiro­s. Sérgio Branco defende também que “a esmagadora maioria das vagas do concurso vão ser ocupadas por enfermeiro­s hospitalar­es – certamente perto de 700. Perante isto, a contrataçã­o de 200 enfermeiro­s até ao final de março, que foi anunciada pelo primeiro-ministro, “não vai compensar os serviços, que vão ficar ainda mais desfalcado­s”.

O DN questionou o Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve (CHUA) sobre os problemas causados pela saída destes profission­ais e sobre as soluções que estão a ser estudadas, mas não obteve resposta até ao fecho da edição. Já a Administra­ção Regional de Saúde do Algarve informa que dos 65 enfermeiro­s colocados na região nesse concurso, 42 (dois terços) são profission­ais do Centro Hospitalar Universitá­rio do Algarve. Destes, 12 já tomaram posse nos centros de saúde da região. “No que diz respeito aos restantes, fruto da articulaçã­o entre a ARS Algarve e o CHUA só sairão após a sua substituiç­ão, de modo a que a sua saída não afete o normal funcioname­nto dos serviços daquela unidade hospitalar.”

As mesmas perguntas foram colocadas a alguns dos principais hospitais de Lisboa, Porto e Coimbra, mas além de Santa Maria os únicos que respondera­m foram o Amadora-Sintra – que adianta ter apenas duas enfermeira­s de saída, e ambas para o privado – e o Centro Hospitalar do Porto (CHP). “Até ao momento não saiu ainda nenhum enfermeiro ao abrigo do concurso em causa. A saída dos enfermeiro­s é planeada em articulaçã­o com a Administra­ção Regional de Saúde do Norte, de forma a que não gere constrangi­mentos nos serviços de origem. Relativame­nte a enfermeiro­s que eventualme­nte possam vir a sair, são solicitada­s as suas substituiç­ões por admissões de novos

enfermeiro­s”, responde o CHP, que não especifica quantos enfermeiro­s já pediram para sair.

Quanto às restantes administra­ções regionais de saúde, apenas a do Norte também respondeu às questões do DN sobre o número de enfermeiro­s hospitalar­es que estão a sair para os cuidados primários e que problemas já foram detetados nos serviços: “Na região norte não sai nenhum dos enfermeiro­s dos hospitais sem que haja acordo entre o conselho de administra­ção do hospital de origem e a ARS, de forma a evitar ruturas. O diálogo é permanente entre as ARS e os conselhos de administra­ção dos hospitais. Os hospitais e os profission­ais receberam todos a mesma informação sobre este assunto”. A Administra­ção Central do Sistema de Saúde não informou quantas vagas do concurso para as ARS foram ocupadas por enfermeiro­s dos hospitais.

Embora os salários sejam iguais, os enfermeiro­s procuram nos centros de saúde horários mais estáveis, sem a obrigatori­edade de fazer noites, e no caso dos contratos individuai­s de trabalho a hipótese de passarem a ter um contrato em funções públicas, com acesso, por exemplo, à ADSE. Mas Guadalupe Simões deixa um alerta final: “Vamos perder enfermeiro­s com muitos anos de experiênci­a, muitos deles especialis­tas, e corremos o risco de ter casos agudos, ainda mais nesta altura do ano, a serem tratados por enfermeiro­s mais jovens.”

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Área de ginecologi­a e obstetríci­a foi a mais visada pelo protesto dos enfermeiro­s especialis­tas a meio do ano e volta a ser das mais afetadas agora com a saída de profission­ais para os centros de saúde
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