O sonho americano
Gostava de ver isso. Correrem com imigrantes ilegais. Com todos!” António espreita-me por cima dos óculos meio embaciados dentro da sua fábrica de chouriços e linguiça. É o negócio com que conta reformar-se. Já leva 66 anos, nasceu na ilha do Pico e veio para o Norte da Califórnia muito novo, com 12 anos. António faz uma pausa e só depois termina, como que a saborear o meu espanto “este país parava! Ficava pior que os Açores”.
António está casado com uma imigrante ilegal, mexicana, sem qualquer hipótese de legalização. “Já tentei tudo”, diz. É o segundo casamento, o segundo fora da comunidade portuguesa. Duas mexicanas. “Nunca gostei das portuguesas”. Já se percebe melhor a rejeição a Trump.
Nunca chegou a estudar aqui. Fez a quarta classe na Madalena, mas quando chegou nunca compreendeu bem o que lhe estavam a tentar ensinar, o inglês bem falado só chegou mais tarde. Foi para a apanha da fruta, com o pai. Ganhava 75 cêntimos de dólar por hora. Já homem comprou terra, um punhado de vacas e montou uma leitaria com o pai. O negócio cresceu e foi vendido, como muitos outros que tentou. Chegou a ser dono de clubes noturnos em San José, mas acabou por ficar com o negócio de um tio – a fábrica de chouriços.
António é apenas um exemplo. Basta uma meia dúzia de conversas para chegar orgulhoso ao hotel, ao final do dia. Resiliência? Empreendedorismo?! Sim, as palavras são relativamente recentes, mas os conceitos não. Nem são, de todo, estranhos aos portugueses aqui no Norte da Califórnia. A uns 45 minutos de distância de San José e da fábrica de chouriços do Sr. António, encontro-me com Pedro para um almoço num outro ponto de Silicon Valley. Falamos de startups, de investimentos e empresas portuguesas, de casos de sucesso e exemplos de tentativa e erro. Há um mundo inteiro de diferença entre o subúrbio de San José onde António gere a sua fábrica de chouriços – um bairro meio degradado perto de Little Portugal –e a zona comercial onde, enquanto como uma piza com Pedro, vão passando carros de luxo e desfilando roupas e cãezinhos caros. São dois mundos que pouco se cruzam, têm poucas pontes, mas muito mais em comum do que António e Pedro possam imaginar.
Nem todas são histórias de sucesso, claro, e não são exclusivas da Califórnia. Encontrei vidas semelhantes na costa leste. O sonho americano assentou-lhes bem. Só no vale de São Joaquim há mais portugueses de descendência açoriana do que em todo o arquipélago. Na agricultura e nos laticínios, há portugueses com impressionantes histórias de sucesso. Não muito diferentes da do Sr. António, mas com outra escala. Será que é o país, ou neste caso as ilhas, que nos limitam os movimentos? Já estamos cansados de ouvir que os trabalhadores portugueses têm níveis de produtividade extraordinários na Alemanha ou noutros destinos europeus. Atribuímos isso, frequentemente, à qualidade da gestão. Aqui é um jogo completamente diferente. Empresas fundadas por portugueses lideram e dominam segmentos de mercado. Será o ecossistema a fazer a diferença, um ambiente mais amigo da iniciativa privada, da vontade de fazer e de arriscar? O que é que nos trava quando jogamos em casa? Já não será, certamente, um problema de escala. Há décadas que qualquer empresário português tem à sua disposição, quase sem barreiras, toda a Europa – um mercado com mais de 500 milhões de consumidores. Por que razão nunca o aproveitámos verdadeiramente?