O autor global e a sua solidão criativa
No Festival de Cannes, ao apresentar o seu filme mais recente – O Amigo Gigante, uma fábula baseada no conto The BFG, de Roald Dahl –, Steven Spielberg comentou o facto de este ser o seu primeiro trabalho produzido pelos estúdios Disney. Não se tratava de uma novidade absoluta, uma vez que vários dos seus filmes já tinham tido distribuição internacional com chancela Disney. Era antes uma especial componente criativa: para além da marca dos estúdios, e através do artifício da fábula, ele podia celebrar também o facto de os filmes de Walt Disney (1901-1966) terem marcado de modo indelével a sua própria infância.
Eis uma filiação que, paradoxalmente, confere ao autor de alguns dos maiores sucessos da história do cinema – Tubarão (1975), Os Salteadores da Arca Perdida (1981), Parque Jurássico (1993), etc. – uma insólita solidão. Podemos identificá-lo como uma espécie de benjamim da geração que protagonizou a reconversão das estruturas clássicas de Hollywood – Martin Scorsese, por exemplo, nasceu em 1942, é mais velho quatro anos; por sua vez, Oliver Stone, tal como Spielberg, nasceu em 1946. Quase todos eles, mesmo através de estilos muito diversos, distinguiram-se por uma atitude crítica perante os modelos clássicos. Spielberg é o único que se define a partir da homenagem a esse património clássico. A sua formação não decorre tanto das convulsões dos anos 60, precisamente a época em que esses cineastas começa- ram a trabalhar, mas mais do fascínio pela idade de ouro de Hollywood. Digamos, para simplificar: não é um discípulo da Nova Vaga francesa, mas um herdeiro de Disney.
Há nele uma fundamental fixação na infância e nos seus muitos mundos de aventuras. No plano simbólico, as euforias e angústias de um filme como E.T., o Extraterrestre (1982) correspondem mesmo a uma atualização dos temas familiares que perpassam nos clássicos Pinóquio (1940), Dumbo (1941) e Bambi (1942), da época gloriosa de Disney. Ao mesmo tempo, a infância representada por Spielberg convoca e, por assim dizer, atrai os dramas da história global da humanidade, em particular no século XX.
Novo paradoxo: a reserva de maravilhoso que as crianças representam nos seus filmes coexiste com a metódica crueza dos factos e símbolos da história coletiva. Exemplo supremo de tal dialética, por certo um dos momentos mais pessoais da filmografia de Spielberg: Império do Sol (1987), retratando a saga de um rapaz separado dos pais em 1941, depois do ataque a Pearl Harbor, sobrevivendo num campo japonês para prisioneiros britânicos.
Importa, por isso, contrariar a visão tecnicista que tende a definir Spielberg como um mago dos “efeitos especiais”. Claro que, a par do seu amigo George Lucas, ele tem sido um dos líderes da revolução tecnológica que transfigurou Hollywood nas últimas décadas, inclusive, mais recentemente, na integração da chamada performance capture que permite criar personagens digitais a partir do registo do trabalho dos atores – antes de O Amigo Gigante, assim tinha acontecido em As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne (2011), filme genuinamente revolucionário cujo discreto impacto comercial o mantém, para já, como uma pérola quase esquecida. Mas nada disso impede que a sua visão envolva uma avaliação minuciosa, a um tempo desencantada e pedagógica, de grandes convulsões coletivas como a Segunda Guerra Mundial.
A esse propósito, lembremos a excelência de A Lista de Schindler (1993), uma arriscada abordagem do Holocausto que lhe valeu a consagração máxima em Hollywood (sete Óscares, incluindo melhor filme do ano) e O Resgate do Soldado Ryan (1998), odisseia construída a partir de uma meticulosa encenação realista do desembarque dos Aliados na Normandia. Isto sem esquecer, claro, a evocação da escravatura em Amistad (1997) e Lincoln (2012). Ou ainda a abordagem de contextos tão delicados e complexos como o terrorismo nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique (2005), e os bastidores da Guerra Fria, em A Ponte dos Espiões (2015).
A pluralidade do fator humano faz de Spielberg um verdadeiro humanista que, no interior da história de Hollywood, pode ser definido como discípulo de outro mestre clássico: Frank Capra (1897-1991), autor de títulos lendários como Uma Noite Aconteceu (1934) ou Do Céu Caiu Uma Estrela (1946). Para lá de todos os clichés que, não poucas vezes, envolvem a sua imagem mediática, importa lembrar que, na procura de um conhecimento mais incisivo das suas raízes judaicas, Spielberg é também o cidadão que usou os lucros gerados por A Lista de Schindler para criar a Fundação Shoah, instituição vocacionada para a recolha e organização de memórias dos sobreviventes do Holocausto. À sua maneira, ele é um arqueólogo do individual e do coletivo, do coletivo através do individual.
A infância convoca os dramas da história global da humanidade, em especial no séc. XX