Diário de Notícias

A lepra do rio

- PE DRO B I DARRA Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Os meus pais embarcaram um dia no Príncipe Perfeito para dar a volta a África. Pararam no Funchal, em Luanda, na Cidade do Cabo, em Lourenço Marques, na Beira e depois voltaram. Eu fiquei em casa dos meus avós à janela, a olhar o Tejo e a imaginar a viagem. Foi aí por volta de 1970; aquele mundo estava a dar as últimas mas ninguém sabia. A casa dos meus avós ficava na Graça, empoleirad­a na colina que desce para Santa Apolónia e que dá para o grande mar da Palha, assim chamado por causa dos paus, das palhas e dos juncos que a corrente arrancava às margens das lezírias que havia a montante. As traseiras da casa eram abençoadas com uma marquise que chegava ao tecto, de vidros retangular­es, seguros à estrutura de ferro com massa de vidraceiro. Um enorme ecrã que dava para os quintais de árvores de fruto e de onde nascia uma gigantesca chaminé de padaria que se elevava acima dos prédios para não incomodar a vizinhança. Na época, o Tejo estava cheio de navios fundeados à espera de vez para atracar e descarrega­r.

Nas semanas em que fiquei com os meus irmãos ao cuidado dos avós, aprendi o ritmo das marés. Quando a maré vazava os barcos apontavam a proa para montante, quando enchia, rodavam em volta do ferro fixo no leito do rio, e viravam- se, casmurros, contra a corrente que então corria rio acima. O meu avô explicou- me e eu fiquei a saber. Explicou- me também que as marés culminavam as suas subidas e descidas em turnos de sensivelme­nte seis horas. Era fácil de ver quando a maré estava cheia ou vazia. Os barcos desordenav­am- se e cada um virava- se para seu lado, a descansar do corrupio das subidas e descidas.

O meu avô tinha sido marinheiro. Quando a minha mãe nasceu estava em manobras no Mediterrân­eo. Naquele tempo o nascimento era coisa de mulheres e das suas famílias. Os homens estavam onde tinham que estar e, terminado o parto e entregue a criança ao mundo, logo vinham vê- la. O meu avô recebeu a notícia do nascimento da filha por telegrama. Agora era a filha que andava pelo mar, em festas de salão, e o pai que tomava conta dos netos. Os telegramas chegavam do Príncipe Perfeito, entregues por rapazes que guiavam bicicletas de corrida, vestidos de farda cinzenta, sapatos e polainas pretas: “Chegamos A Luanda Stop Viagem Calma Stop Beijos Stop.” En- tregador de telegramas era uma das profissões com que eu sonhava em miúdo. A outra era soldador. Do escritório do meu pai, na Margueira, via os homens pendurados nos cascos dos cargueiros, escondidos atrás de máscaras de metal e armados de gadgets que cuspiam fogo e faíscas. Era tudo o que queria da vida.

O Tejo, na época, estava cheio de barcos fundeados, vindos de um lado do mundo e em escala para o outro. Imaginava os marinheiro­s a bordo dos que estavam fundeados, debruçados sobre a amurada, à espera da sua vez para vir a terra e dar umas voltinhas pela Baixa e pelo Cais do Sodré. Sempre que um rebocador se aproximava do barco, o meu avô explicava- me as manobras que se iam seguir. E elas seguiam- se, como se tivesse sido ele a escrever o script.

Uma das histórias que o meu avô me contou, durante essas semanas, foi a do naufrágio do Patrão Lopes no Bugio. Uma embarcação baptizada em memória do grande marinheiro e socorrista, o tal Patrão Lopes, homem de Olhão com direito a estátua em Paço D’Arcos, junto ao Instituto de Socorros a Náufragos, onde viveu e fez o seu nome. Ironicamen­te, o barco com o seu nome, uma embarcação ao serviço de ISN, naufragou e afundou- se no Bugio quando rebocava um batelão alemão, o Franz. O meu avô ia a bordo. Primeiro encalharam à entrada da barra, durante a baixa- mar, e ali ficaram à espera de socorros. O barco estava mal equipado e os socorros, quando chegaram, também vinham mal equipados. Tiveram de esperar pela praia- mar mas não conseguira­m desencalha­r o barco. Ao segundo dia o casco do Patrão Lopes foi rasgado pelo mastro do Franz, que se virou com força das vagas. O Patrão Lopes afundou- se. O meu avô e outros tripulante­s nadaram até ao Bugio, onde foram salvos. Mas só muitas horas mais tarde. Foi no dia 29 de Fevereiro de 1936. Ocorrência bissexta em ano bissexto. Com o naufrágio, e por ter passado o dia e a noite encharcado e exposto aos ventos fortes e frios de noroeste, o meu avô ganhou uma bronquite crónica. E perdeu uns chouriços. Tinha trazido uns chouriços do Alentejo com que contava fazer uns petiscos a bordo, caso o turno fosse calmo. “Tenho pena é dos chouriços”, dizia. “Eram dos bons.”

Entretanto, debruçado à janela sobre o Tejo, e enquanto o meu avô contava histórias, eu imaginava as festas a bordo do Príncipe Perfeito, os salões cheios de Grace Kellys, Ingrid Bergmans, escritores e artistas; imaginava os mares tropicais, os ventos quentes, os peixes- voadores e os grandes animais em África. Imaginava o Príncipe Perfeito a passar o alteroso cabo das Tormentas, de que o meu avô falava com respeito. Também fazia histórias e imaginava as viagens e os viajantes dos barcos que via fundeados no mar da Palha. Muito viajei nessas semanas que passei à janela. Quando os meus pais voltaram, e contaram a viagem e mostraram as fotografia­s, era tudo como eu tinha imaginado.

Hoje já não há barcos no Tejo. Também já não tenho a casa dos meus avós com a grande marquise de ferro que se abria para os quintais e para o mar da Palha. Os meus avós morreram, como é normal que tivesse acontecido. O Tejo também morreu, o que não é assim tão normal. Nunca houve tão poucos barcos no Tejo, talvez desde que os cruzados aqui desembarca­ram para ajudar o primeiro Afonso. Deve ser uma maldição qualquer. A maldição da periferia, a maldição da economia, a maldição dos custos, a maldição de uma geração que quis ser europeia, loira e de olhos azuis e que virou as costas ao mar, à geografia e aos nossos chouriços. O rio parece que está doente, que tem lepra, um mau hálito que afasta barcos, homens e golfinhos da sua boca. Hoje, quando o vejo vazio, o que imagino são embarcaçõe­s a passar ao largo, longe da costa, avisadas de uma estranha maldição pelo canal 16 do VHF.

 ??  ?? Naufrágio do rebocador Patrão Lopes junto ao farol do Bugio a 29 de Fevereiro de 1936
Naufrágio do rebocador Patrão Lopes junto ao farol do Bugio a 29 de Fevereiro de 1936
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