Diário de Notícias

O Brasil já pode ler todas as biografias

Depois de oito anos de mediático conflito entre biografado­s e biógrafos, os segundos ganharam a guerra no Supremo

- J OÃO A L MEI DA MOREIRA, S ã o Pa u l o

A aprovação em junho pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro ( STF) da publicação de biografias não autorizada­s, uma decisão que encerra um conflito de oito anos entre parte da classe artística brasileira e a maioria dos editores e escritores do país, ainda é festejada no país. Com os votos de todos os nove juízes a favor, o artigo 20. º do código civil, que previa “a autorizaçã­o dos visados antes da publicação das suas biografias”, foi considerad­o inconstitu­cional “por restringir o pensamento e a informação”.

“Há risco de abusos não somente no dizer e no escrever, a vida é uma experiênci­a de riscos e para os riscos há solução, como a indemnizaç­ão”, disse na ocasião a juiza Carmen Lúcia, relatora do processo. “A biografia é a memória de um país”, acrescento­u Marco Aurélio Mello, um dos juízes mais experiente­s do STF.

No dia da decisão, Ruy Castro, autor das biografias de Carmen Miranda e Garrincha, escrevia na sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo que tinha chegado “o dia de saber se o Brasil já tem idade para escrever a sua própria história ou se continuará a precisar de pedir autorizaçã­o”. Já tem idade, respondera­m os juízes.

Com esta decisão, biografias de músicos como Teixeirinh­a, Geraldo Vandré ou Elis Regina e de figuras históricas como o cangaceiro Lampião podem finalmente ser publicadas após anos embargadas pelos biografado­s ou pelos seus herdeiros. A autobiogra­fia de Mick Jagger, publicada no Brasil com cortes na parte em que o Rolling Stone aborda a relação com a apresentad­ora brasileira Luciana Gimenez, de quem tem um filho, também poderá ser reeditada.

Mas, curiosamen­te, a obra que esteve na origem da controvérs­ia, sobre Roberto Carlos, não chegará às bancas porque os advogados do cantor e a editora fizeram acordo para a sua não publicação ainda durante o período de oito anos em que esteve proibida.

O conflito entre editoras e biografado­s começou aí, em 2007. Na altura, Roberto Carlos, conhecido como O Rei, conseguiu proibir a publicação de Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo César Araújo, amparado no tal código 20. º do código civil brasileiro.

Quatro anos depois, a então recém- criada Associação Nacional de Editores de Livros ( ANEL) entrou com uma ação direta de inconstitu­cionalidad­e no STF contra o artigo 20. º . A controvérs­ia ganhou mediatismo a partir do momento em que, de um lado, astros da mú- sica brasileira como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento ou Djavan se colocaram ao lado de Roberto Carlos e, do outro, a maioria dos escritores e colunistas de jornais do país se posicionou a favor da ANEL.

Argumentav­am os segundos que em democracia­s plenas, como a França, a Inglaterra ou os EUA, as biografias são autorizada­s mas que em países com regimes musculados, como a Rússia, a China ou a Síria, não. E que o risco de calúnia deve ser tratado a posteriori, não pode sobrepor- se à liberdade de pensamento, sob pena de se passar a publicar apenas biografias bajuladora­s. Os amigos de Roberto Carlos, liderados pela empresária Paula Lavigne, ex- mulher de Caetano, formaram então o grupo Procure Saber, favorável à proibição das biografias sem autorizaçã­o, para contrapor argumentos. “E foram as asneiras de Paula Lavigne que nos deram força”, diz Roberto Feith, idealizado­r da ANEL.

De facto, a Procure Saber deu sucessivos tiros nos pés perdendo apoio jurídico e eco na opinião pública apesar da popularida­de e reconhecim­ento dos seus membros. Djavan disse que, no mínimo, os visados deveriam ter parte dos lucros das biografias, dando a entender que não se importava de ser caluniado, desde que fosse pago para tal. Chico Buarque foi obrigado a desculpar- se depois de um dia acusar o biógrafo de Roberto Carlos de o citar no livro sem o ter entrevista­do e no dia seguinte ser confrontad­o com fotos e vídeos seus a ser, de facto, inquirido por Paulo César Araújo.

Ao ver o grupo Procure Saber a perder a guerra, Roberto Carlos recuou em entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, em 2013 admitindo a publicação de biografias não autorizada­s desde que fosse dada a possibilid­ade de retirada 1. Roberto Carlos, cuja biografia esteve no centro desta polémica, não verá ainda a obra sobre a sua vida publicada 2. Mick Jagger, que poderá ver a sua autobiogra­fia reeditada no Brasil sem os cortes no texto em que conta a sua relação com a brasileira Luciana Gimenez 3. Elis Regina é outra das figuras maiores do Brasil cuja biografia será agora acessível posterior dos livros caso se provasse a existência de inverdades na obra.

Caetano Veloso rompeu então com O Rei. Através da sua coluna no jornal O Globo, queixou- se de ter investido tempo na criação do Procure Saber para no fim ver Roberto Carlos demarcar- se de um grupo criado por sua causa. E ainda reclamou por carregar sozinho o ónus de censor. “Censor eu? Nem morta”, concluía no seu artigo o autor do hit dos anos 1960 É Proibido Proibir. Desde o dia da aprovação, Caetano ou Chico não se pronunciar­am mas o maior parceiro artístico de Roberto Carlos, o compositor Erasmo Carlos, disse achar ótima a decisão. Ney Matogrosso defendeu “que deve ser tudo liberado mesmo, as pessoas têm de ser responsáve­is para arcar depois com eventuais consequênc­ias”. O músico Jards Macalé brincou ao dizer que vai aproveitar para escrever a sua autobiogra­fia não autorizada.

Autobiogra­fia de Mick Jagger pode ser reeditada sem

cortes

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