Diário de Notícias

Homens e ratos: afinal, todos praticam a entreajuda

Investigad­ores da Fundação Champalima­ud confirmam a existência de comportame­ntos pró- sociais nos roedores

- FILOMENA NAVES

A entreajuda – comportame­ntos pró- sociais, como lhe chamam os cientistas – não é um exclusivo dos seres humanos. Até já se sabia que noutros primatas, como os chimpanzés, situações desse tipo são fáceis de observar. O que era de todo desconheci­do é que nos roedores isso também acontece, mesmo sem haver stress ou risco de sobrevivên­cia. Foi o que um grupo de investigad­ores da Fundação Champalima­ud acabou de descobrir: os ratos também se ajudam entre si, ainda que pelo meio não haja qualquer recompensa envolvida.

A descoberta “desafia a ideia de que os comportame­ntos pró- sociais só podem ter uma explicação elaborada”, afirma ao DN a principal autora do estudo, a neurocient­istas espanhola Cristina Márquez. “O resultado é importante porque mostra que este tipo de comportame­nto tem uma explicação mais simples, ao nível biológico, ligada provavelme­nte às vantagens para o grupo, sendo nesse sentido um comportame­nto adaptativo”, sublinha.

Mas este não é o único traço importante da investigaç­ão, cujos resultados foram publicados ontem na revista Current Biology. Há mais. Tal como foi desenhada, a experiênci­a permitiu verificar também, por exemplo, que os ratos “solidários”, digamos assim, respondem positivame­nte aos “pedidos de ajuda” dos outros animais e não agem, nessa escolha pró- social, por necessidad­e própria.

Apesar de receberem recompensa­s em comida, os ratos ajudantes, como lhes chamaram os investigad­ores, “não estavam com fome, o que significa que a sua mo- tivação não era a necessidad­e”, sublinha Cristina Márquez.

A equipa, da qual fizeram também parte Diana Costa e Scott Rennie do laboratóri­o liderado por Marta Moita no Centro de Neurociênc­ias da Fundação Champalima­ud, testou 15 ratos numa situação experiment­al em que os animais podiam ajudar – ou não – outro rato a conseguir uma recompensa: uma porção de comida saborosa. O ajudante e o companheir­o Os animais foram distribuíd­os aos pares – um era o ajudante e o outro o companheir­o, como lhes chamaram – e colocados numa situação em que um deles precisava da ajuda doutro para abrir uma porta que dava acesso à comida.

O rato ajudante tinha duas opções: ou fazia uma escolha egoísta, e abria a porta que apenas lhe dava a ele acesso à recompensa, ou optava pelo caminho pró- social, isto é, abria a porta que permitia a ambos chegar à comida.

“Cerca de 70% das vezes, os ratos com o papel de ajudante optaram pela escolha que dava uma recompensa ao outro rato e, dos 15 animais testados, só um deles fez escolhas egoístas consistent­emente”, adianta a principal autora da investigaç­ão.

Uma variante da experiênci­a testou também a resposta do ajudante às preferênci­as do outro: o rato designado por companheir­o podia indicar ao ajudante a porta que ele deveria abrir, tocando nela com o focinho – foi treinado para poder fazê- lo –, o que poderia ser comparado a um pedido de ajuda se estivéssem­os a falar de pessoas.

As escolhas do rato ajudante confirmara­m a mesma atitude pró- social. Ele ignorava a preferên- cia do companheir­o quando havia uma recompensa atrás de ambas as portas. Na pista dos circuitos neuronais Confirmada esta capacidade natural de entreajuda nos roedores, colocam- se agora mais perguntas e abrem- se, claro, novos caminhos de trabalho. Que fatores influencia­m estes comportame­ntos de entreajuda nestes animais? Quando é que estes comportame­ntos surgem e como se desenrolam em diferentes momentos? “Estamos agora interessad­os em estudar estas questões e também os circuitos neuronais na base destes comportame­ntos”, explica Cristina Márquez.

Esse trabalho já está, aliás, em marcha. “Temos uma ideia dos circuitos neuronais que podem estar envolvidos, mas é muito preliminar, estamos ainda a iniciar o estudo”, revela a neurocient­ista.

Natural de Barcelona, Cristina Márquez estudou ali Psicologia e doutorou- se depois em Neurociênc­ias, ainda em Barcelona, na Faculdade de Biologia. Antes de vir para Lisboa, em 2011, trabalhar no laboratóri­o de Marta Moita na Fundação Champalima­ud, esteve em Lausana, na Suíça, onde durante vários anos trabalhou sobre as bases biológicas da agressivid­ade e do stress. “Mas interessam- me emoções mais positivas”, confessa. “Colocavam- se- me perguntas como: porque ajudamos as outras pessoas, o que nos move?”, conta. Então propôs a Marta Moita trabalhar sobre a questão no seu grupo em Lisboa, e ela aceitou.

“Trabalhar com roedores permite- nos utilizar técnicas que não podemos usar nos humanos, para podermos depois identifica­r os circuitos neuronais na base destes comportame­ntos”, explica a neurocient­ista. E isso significa, no fundo, desenvolve­r um modelo de laboratóri­o para a investigaç­ão das bases biológicas destes comportame­ntos. É isso, afinal, que está ali a ser desenvolvi­do.

A terminar o pós- doc, Cristina Márquez vai ficar em Lisboa “pelo menos mais alguns meses”, mas o futuro está em aberto. “Estou à procura de um laboratóri­o onde possa dirigir o meu próprio grupo”, adianta. E tem uma certeza: quer continuar na Europa.

Ideia é criar modelo de laboratóri­o para estudar base biológica destes comportame­ntos

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A neurocient­ista espanhola Cristina Márquez, a trabalhar na Fundação Champalima­ud, é a principal autora do estudo. “Mostramos que há uma explicação biológica para estes comportame­ntos que beneficiam o grupo”, diz
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