UMA FAMÍLIA DE OITO PESSOAS VIVE NUM ANEXO HÚMIDO SEM CASA DE BANHO. O PEDIDO DE HABITAÇÃO SOCIAL FOI MANDADO ARQUIVAR PELA BUROCRACIA DA CÂMARA DE VALONGO
O MOVIMENTO DOS CAPITÃES DEIXA DE SER MERA POSIÇÃO CORPORATIVA NA DEFESA DE INTERESSES DOS MILITARES E PASSA A TER UM CONTEÚDO PROGRAMÁTICO: ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO POLÍTICA PARA O ULTRAMAR OU DERRUBAR O REGIME
Oanexo é de pequenas di- mensões. Fica por baixo da casa dos pais de Lilia- na Rafael,
de 35 anos, em pleno coração da cidade de Valongo, nos arredores do Porto. No local dormem 8 pessoas – entre as quais 6 filhos do casal, todos me- nores de idade. A habita- ção só tem um quarto e pelo menos dois dos meninos, de 5 e 8 anos, têm de dor- mir no chão da sala.
“Tem uma esponja que faz de colchão e que eu tiro e ponho todos os dias. A esponja serve para eles não estarem diretamente a dormir na tijoleira. O espaço não dá para colocar uma cama. É uma divisão pequena e é aqui que eles brincam, dormem, comem e estudam. Não é fácil para uma mãe ver os filhos a dormir no chão”, conta Liliana, que dorme com os dois filhos mais pequeninos, Júnior de 18 meses e João, de 2 anos, no único quarto. “Eu faço tudo para que não lhes falte nada, principalmente amor. Mas no fundo falta-lhes o mais importante: uma cama onde possam dormir tranquilos e onde possam acordar sem dores nas costas”, frisou a mãe dos seis rapazes.
O pai dos meninos, Nuno, que é o único sustento da casa e ganha um valor perto do ordenado mínimo, dorme no sofá da sala. No anexo há ainda uma pequena divisão improvisada, sem janela, e onde cabe apenas uma cama de solteiro e uma secretária, parecendo um corredor. É aqui que dorme o filho de 10 anos. O mais velho, de 17, fica a dormir a maior parte das vezes na casa dos avós. Caso assim não fosse, tinha também de ficar a dormir no chão. O anexo, a que
“Não é fácil para uma mãe ver os filhos a dormir no chão”
Liliana Rafael
Mãe de 6 filhos
chamam casa, é frio, húmido e deixa entrar chuva. Não tem casa de banho: esta divisão fica na parte de fora – tendo esta família de se sujeitar ao frio, sempre que alguém toma banho. “Isto mata-me aos bocados”, desabafa Liliana.
Asma e bronquite
“No único quarto, limpo a parede todas as semanas e os panos ficam pretos da sujidade. Isto faz mal aos meus filhos em termos de asma e bronquite. Vivo preocupada”, explica Liliana, que é mãe a tempo inteiro e que precisa de uma casa. “Isto não é um sacrifício. É amor. Mas é muito complicado. O dinheiro que o meu marido ganha, caso quisesse alugar uma casa, seria todo para a renda. Ia dar fome aos meus filhos? Um T2 tem um valor a rondar os 700 e os 900 euros. Já pedi ajuda à câmara de Valongo mas não me dão resposta. Dizem que meu processo foi arquivado, que não têm casa de tipologia T5, que é obrigatória para o meu agregado familiar. Mas eu estou a viver num T1. Eu não peço um quarto para cada um. Porque não me arranjam um T3? Os meus filhos são todos rapazes. Coloco beliches e ficam a dormir três em cada quarto. Assim ficávamos muito felizes”, explicou.
À ‘Domingo’, a câmara de Valongo indicou as razões
O processo para a habitação social foi arquivado por falta de documentos
para esta família ainda não ter uma casa: “O processo de procura de habitação social em regime de arrendamento do agregado familiar foi arquivado, uma vez que o mesmo não procedeu à entrega de documentos atualizados, conforme solicitado em ofício enviado e rececionado a 28/7/2023. Até ao arquivamento do Processo de Procura de Habitação Social do agregado familiar em questão e embora conscientes da gravidade e vulnerabilidade do mesmo, não nos foi possível assegurar o seu realojamento, devido à inexistência de habitação de- voluta da tipologia adequada à sua composição. O processo pode ser reaberto a qualquer momento.”
Caso não tenha uma casa digna, a família tem uma outra solução: construir dois quartos e uma casa de banho no terreno ao lado do anexo em que vivem. “Não tenho condições. Se eu pudesse fazer as obras, eu fazia. Os meus filhos perguntam-me quando vamos ter uma nova casa e pedem um local para es- tudar. Amor não lhes falta, mas não lhes consigo dar uma resposta a isso”, disse.
A casa é tão pequena que a família não tem espaço para guardar a roupa e os cobertores. Tem tudo de ficar na rua, à entrada da casa, numa zona que não apanha chuva.
A família já viveu de forma mais confortável, antes da pandemia de Covid-19. Liliana trabalhava como cozinheira num restaurante, que geria. As coisas corriam tão bem que o marido, Nuno, se despediu e foi trabalhar com ela para ajudar no atendimento ao público. Mas em fevereiro de 2020, com o confinamento, tiveram de fechar as portas do estabelecimento. Depois foi tudo uma bola de neve e perderam o pouco que tinham.
REPORTAGEM CM,
HOJE, ÀS 21h30, NA CMTV “Limpo a parede todas as semanas e os panos ficam pretos da sujidade”
Liliana Rafael
Mãe
Acircular n.º 1 do Movimen- to dos Capitães, acerca dos confrontos entre colonos
moçambicanos e a tropa, difundida pela agência France Press, era “citada na BBC, no ‘Le Monde’ (...), na emissora Rádio Portu- gal Livre, de Argel”, desta- ca Otelo Saraiva de Carva- lho em ‘Alvorada em Abril’ (ed. Ulmeiro).
Mas a que ficaria conheci- da como “circular azul” – “fazia questão de usar papel diferente para cada uma”, conta Vasco Lourenço, em ‘Do Fundo da Revolução’ (ed. Âncora) –, mesmo re- velando já uma fratura de setores militares com o regime, ainda era sobre “o necessário desagravo de uma instituição”, que “vem cumprindo, silencio- sa e lealmente, o seu dever”.
Objetivos
Entretanto, sucedem-se as reuniões clandestinas, nas casas de Vasco Lourenço (26 janeiro) e de Otelo (3 de fevereiro). Nesta última, fica decidido elaborar um conjunto de pseudónimos para todos os membros da Comissão Coordenadora Exe- cutiva, como ‘Oscar Pinto’ (Otelo), ‘Silva Costa’ (Sousa e Castro) ou ‘Neto Ramalho’ (Neves Rosa) – “todos engenheiros”, pois, explica Otelo, assim podiam “falar mais à vontade em projetos e planos, sem levantar grande desconfiança” –, embora houvesse outras profissões, do “empregado bancário Rocha Lima” (Rosado da Luz) ao “inspetor de seguros Neto Rama” (Diniz de Almeida). Mas o encontro mais relevante, nesta fase, será o de 5 de fevereiro, no apartamento de Marcelino Marques, onde se discutirá o teor do projeto do primeiro documento-base sobre os objetivos dos conspiradores, que tanto se poderiam limitar a exigências castrenses [ver outra peça] como evoluir para o derrube do marcelismo.
E ali surgem figuras como Costa Brás ou Garcia dos Santos; mas, sobretudo,
Na reunião de 3 de fevereiro fica decidido elaborar um conjunto de pseudónimos para todos os membros da Comissão Executiva do Movimento
Vasco Lourenço gostou muito de ouvir Melo Antunes
Melo Antunes – que até tinha sido candidato a deputado, nas eleições de 1969, pela oposição democrática.
“Um homem notável”
Na sua intervenção, como revelará em ‘O Sonhador Pragmático” (ed. Notícias), frisava que “não chegariam a parte nenhuma se se mantivessem em posição de estrita reivindicação profissional”, acabando por politizar a reunião. A certa altura, Vasco Lourenço, que presidia à sessão, ladeado por Vítor Alves e Otelo, perguntou quem era aquele militar que não conhecia, mas estava a gostar muito de o ouvir – “vi logo que tínhamos homem”.
Afinal, estava perante “um homem notável, de uma inteligência fora de série e de uma cultura política vastíssima”, como o definirá, em ‘Cartas da Guerra’ (ed. Dom Quixote), o romancista António Lobo Antunes. E cujas conceções irão entrar em conflito com as de Spínola.
A remuneração dos oficiais em combate no mato não era invejável. “Um alferes em campanha ganhava 4500 escudos [equivalente hoje a 858 €] por mês, menos do que um porteiro do Cinema Imperial, em Luanda”, sublinha Kenneth Maxwell, em ‘A Construção da Democracia em Portugal’ (ed. Presença). “Um capitão a comandar uma companhia em Moçambique ganhava 10 000 escudos [1906 €], menos do que um barbeiro em Nampula.”