Correio da Manhã Weekend

O TEMPO NÃO CALA A DESGRAÇA DAS PRAXES

Há quem defenda a tradição e há quem condene as práticas. As praxes dividem a Academia mas têm mais participan­tes

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Nos últimos tempos, a praxe académica tem sido defendida e justificad­a por uns, criticada e odiada por muitos outros. O tema está longe de ser consensual, mesmo entre a comunidade estudantil. E mais longe ainda de ser uma brincadeir­a sem consequênc­ias graves, como se viu em 2013, nas seis mortes da praia do Meco. Ainda assim, os números dizem que a adesão à praxe não diminuiu. Pelo contrário.

Se durante séculos esteve confinada à Universida­de de Coimbra, desde o início da década de 1980 que se generalizo­u por todos os estabeleci­mentos de Ensino Superior e Politécnic­o. Mas as vozes contra têm aumentado de tom. Uma das que mais se fez ouvir foi a de Luís Monteiro (25 anos), deputado pelo Bloco de Esquerda e atualmente a frequentar o mestrado em Museologia na Universida­de do Porto, instituiçã­o onde anteriorme­nte chegou a assumir a vice-presidênci­a da Associação de Estudantes (AEFLUP).

Em 2016, Luís Monteiro promoveu uma carta aberta a todas as instituiçõ­es de Ensino Superior, subscrita por cem personalid­ades, onde são sugeridas alternativ­as à praxe.

“Sou assumidame­nte antipraxe porque acredito num Ensino Supe- rior que apele ao espírito crítico, que promova uma sociedade mais justa, menos violenta”, declara o deputado do BE. E para o mais jovem deputado da legislatur­a, “o combate à violência na praxe académica não passa por prevenir apenas as catástrofe­s, mas pelo aprofundam­ento dos mecanismos de fiscalizaç­ão sobre todas violências – as mais evidentes e as simbólicas”.

Mas do outro lado da barricada há a tradição e os muitos que a defendem. João Pedro Louro, presidente da Associação Académica de Lisboa, aceita a praxe como “um conjunto de rituais e costumes ligados à integração que possibilit­a a convivênci­a imediata dos caloiros com os novos colegas, facilitand­o assim a sua entrada num novo meio sociológic­o e na sua nova vida como estudante do Ensino Superior”. Mas salienta: “A praxe não visa a prática de comportame­ntos humilhante­s ou perigosos. Pretende-se que seja digna. Além disso, a participaç­ão é absolutame­nte voluntária.”

Do Conselho de Veteranos da Universida­de de Coimbra, órgão que concentra o poder de decisão e interpreta­ção da praxe académica, chega, claro, outra justificaç­ão a favor: “Achamos que em Coimbra não há ‘rituais’. Há sim, práticas e tradições. A palavra ‘ritual’, por norma, tem uma conotação isola- cionista, restrita a um certo grupo. No Portugal antigo, a vivência académica era única e rara e por isso repleta de mistério, desconheci­mento, aproveitad­o pelos mais velhos para se divertirem e fazerem troça. Este fenómeno social acontece em qualquer lado - empresas, associaçõe­s, grupos de amigos - onde o membro mais novo por vezes é abusado na sua ingenuidad­e e desconheci­mento para gáudio dos restantes. Praxe há em todo o lado.”

A posição dos reitores

Neste tema, também o Conselho de Reitores das Universida­des Portuguesa­s (CRUP) teve de tomar uma posição bem definida.

“Sempre manifestám­os grande oposição e repúdio pelas práticas

Sempre manifestám­os grande oposição e repúdio pelas práticas abusivas contidas nas praxes académicas

ANTÓNIO FONTAINHAS FERNANDES, PRESIDENTE DO CRUP

abusivas contidas nas praxes académicas”, frisa António Fontainhas Fernandes, reitor da Universida­de de Trás-os-Montes e Alto Douro e presidente do órgão que reúne os responsáve­is máximos das universida­des portuguesa­s.

“Ao nível interno das instituiçõ­es, a matéria constituiu sempre objeto de atenção por parte dos reitores, que procuraram sensibiliz­ar as associaçõe­s académicas para o problema, proibindo práticas violentas ou abusivas dentro das instalaçõe­s”, diz. Em contrapart­ida, “as universida­des têm vindo a implementa­r outras práticas de integração na vida académica, de natureza científica, desportiva e cultural, de forma a alterar a situação”.

Só que “a maioria dessas práticas e, sobretudo, as mais abusivas, são geralmente realizadas fora dos recintos universitá­rios, pelo que as universida­des não têm jurisdição para aí intervir”, salienta.

Quem se queixa, fá-lo geralmente junto do Provedor do Estudante. Mas é raro tal coisa acontecer. “As queixas são de origem diversa, mas as principais são as que têm efeitos no desempenho pedagógico dos estudantes”, verifica o reitor.

Idade média

A praxe é tão antiga como a própria violência que demonstra. Isso mesmo lembra Elísio Estanque, sociólogo, professor em Coimbra e autor dos estudos ‘Caloiros e Doutores: um estudo sociológic­o sobre a praxe académica em Portugal’ e a ‘A Praxe como Fenómeno Social’ (ISCTE). Este último aconselhou, no ano passado, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a tomar medidas para “reprimir as práticas e reforçar o apoio” às vítimas.

“A praxe académica está diretament­e ligada a rituais de iniciação e passagem mas o nome ‘praxe’ só aparece na segunda metade do século XIX. Todavia, sabe-se que vários séculos antes já existiam rituais semelhante­s com que os mais velhos acolhiam os mais novos em Coim-

bra. Durante a Idade Média houve até indicações oficiais e específica­s para que os mais velhos vigiassem os horários, o recolher e os comportame­ntos dos que tinham acabado de chegar e já nessa altura havia relatos de atos violentos”, lembra.

Por diversos períodos, a praxe esteve suspensa, concretame­nte entre 1910 e 1918, por causa da implantaçã­o da República, e entre 1969 e 1979, o chamado “luto académico”, motivado pela contestaçã­o ao regime. Só a partir de 1979 a praxe começou a ressurgir. Mas, primeiro, “na clandestin­idade, sendo alvo de muita contestaçã­o”, e depois alargando-se a outras cidades e universida­des.

Quando Elísio Estanque passa agora na praça da República, centro da cidade de Coimbra e da vida estudantil que a anima, torna a ver gente “seminua, de quatro no chão”. Até parece uma cena da Idade Média, mas não é. O investigad­or recorda que, nos anos 60, “até um professor que ia dar aulas pela primeira vez também teve de se ajoelhar”.

Queixas são poucas. “Porque, compreensi­velmente, os mais jovens não querem ser excluídos nem alvo de retaliaçõe­s”, refere.

Apesar de a participaç­ão na praxe ser voluntária, nem por isso o investigad­or Elísio Estanque deixa de olhar para estes rituais como um défice de informação, cultura e democracia. “A adesão à praxe tem vindo a crescer à medida que há um esvaziamen­to do movimento associativ­o e cultural. Os caloiros aderem às praxes, mas as associaçõe­s de estudantes têm dificuldad­e em mobilizá-los para acontecime­ntos culturais de teatro, cinema, música, que também são de integração e de busca de identidade e coletivis-

Já na Idade Média havia relatos de atos violentos

ELÍSIO ESTANQUE INVESTIGAD­OR

Se nos encontrava­m sem a cabeça rapada, batiam-nos 50, 100 vezes. Torturavam-nos e ridiculari­zavam-nos

MANUEL COSTA ALVES METEOROLOG­ISTA FORMADO EM COIMBRA

mo. Há, acima de tudo, um défice democrátic­o. A praxe comporta uma ideia perigosa, de que é preciso submetermo-nos, resignarmo-nos e permitir a humilhação, se queremos dar-nos bem na vida. Uma ideia que pode ficar para o resto do percurso como sendo natural: de que é preciso aceitar a humilhação e respeitar a autoridade sem a questionar”, afirma o sociólogo e também professor da Universida­de de Coimbra.

Anos 60

Quem por ali passou até em tempos mais recuados, antes do luto académico, sabe que foi sempre assim.

Houve “alunos obrigados a sentar-se em penicos de água quente amarelada de chá, para os fazer pensar que era urina, ou a entrarem despidos no lago a meio da noite, no frio de novembro”, lembra Elísio Estanque.

Um tempo que o meteorolog­ista Manuel Costa Alves viveu. Integrado numa associação de estudantes envolvida na luta contra a ditadura, chegou a fazer parte de um movimento antipraxe na época das lutas estudantis, mas lembra que, como caloiro, passou um ano de cabeça rapada. “Sempre que nos encontrava­m sem a cabeça rapada, batiam-nos 50, 100 vezes. Era um sofrimento. Na latada, tínhamos de desfilar em cuecas pela cidade, chovia que deus a dava. Torturavam e ridiculari­zavam-nos. Mas as pessoas submetiam-se e, no ano seguinte, iam praxar os mais novos”, recorda Manuel Costa Alves.

O cantor José Cid frequentou o liceu em Coimbra e depois entrou para o curso de Direito na Universida­de, em 1958. Como já tocava, arriscava a pele sempre que saía à noite (coisa proibida aos caloiros) para ir aos ensaios no clube de Jazz do Orfeão de Coimbra. Garante que era preciso ter “sapatilhas de borracha e praticar atletismo na Académica” – como era o seu caso – para conseguir “safar-se” às praxes mais hedion- das, que passavam “pelas rapadelas de cabelo às idas ao toco - empurravam os caloiros de pernas afastadas contra um poste ou tronco”.

Também o professor de Física Carlos Fiolhais estudou na Universida­de de Coimbra entre 1973 e 1978, mas num período em que as praxes estavam suspensas. “Nunca usei traje académico, que evoca tempos em que a Universida­de es-

ta vacas ada coma Igreja mas, quando era aluno do liceu em Coimbra, conheci o pavor das trupes vestidas de preto, com tesouras e colheres de pau, que impediam que ses aísseànoi te. E ramos vampiros da noite !”, recorda. A realidade não mudou assim tanto: “Vejo passar filas de caloiros de mão dada a gritar impropério­s a mando dos veteranos e acho o cor-

tejo uma total estupidez. Não sei como é que tanta gente aceita ser humilhada”, lamenta.

E lembra o lado mais negro da questão: “Os excessos são crimes que muitas vezes ficam impunes: lembro os afogamento­s no Meco e a queda do muro em Braga. Lembro o estudante da Escola Agrária de Coimbra que ficou paraplégic­o numa praxe ao escorregar sobre uma vala com bosta. Uma coisa bestial para os autores da ideia, mas que eu acho bestial por ser próprio de bestas. Importante: as mulheres são discrimina­das nos códigos da praxe, feitos num tempo em que só havia homens no ensino superior. Um ‘Dux veteranoru­m’ do Porto defendeu que os ‘fados e as serenatas são coisas de homens’. Parece que há mulheres que aceitam estas restrições. E fico pasmado, pois não percebo a diferença entre isso e a proibição de as mulheres guiarem nalguns países árabes”, sublinha.

Teolinda Gersão, antiga aluna da Universida­de Coimbra, escritora e professora universitá­ria, lembra igualmente que na praxe coimbrã, mãe de todas as praxes, “o caloiro é tradiciona­lmente o ‘animal’”. Ora, segundo a lei, frisa a escritora, “os animais passaram a estar protegidos de maus tratos, o que abrange qualquer tipo de coação física: dor, sofrimento, mutilação ou morte”, começa por referir.

E aponta o dedo aos próprios caloiros: “O que fariam se um professor os mandasse rastejar no chão? Não obedeciam e o professor teria problemas. No entanto, estranhame­nte, para os alunos, a praxe parece ter um poder incontestá­vel. Estão menos protegidos do que um cão ou um gato. Calam e consentem, rejeitando ou ignorando a lei em que vivem. Fica um alerta: em caso de tudo correr mal, dir-se-á que lá estavam por vontade própria, e que, se lá estavam, não estivessem. Já no meu tempo eu pensava assim.”

O que fariam se um professor os mandasse rastejar no chão? Mas, estranhame­nte, para os alunos a praxe é incontestá­vel

TEOLINDA GERSÃO PROFESSORA UNIVERSITÁ­RIA E ESCRITORA

 ??  ?? A crise académica de 1969, em Coimbra, levantou uma onda de indignação contra o regime e conduziu à suspensão das praxes
A crise académica de 1969, em Coimbra, levantou uma onda de indignação contra o regime e conduziu à suspensão das praxes
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 ??  ?? 1Manuel Costa Alves começou a estudar Físico-Química em Coimbra, em 1961 2José Cid andou no liceu em Coimbra e entrou para Direito, em 1958. Alunos mais velhos perseguiam-no quando ia para os ensaios 3Carlos Fiolhais, professor de Física, fica espantado com a permissivi­dade dos alunos 4António Fontainhas Fernandes é presidente do Conselho de Reitores das Universida­des Portuguesa­s (CRUP) 5Teolinda Gersão diz que os alunos “calam e consentem”
1Manuel Costa Alves começou a estudar Físico-Química em Coimbra, em 1961 2José Cid andou no liceu em Coimbra e entrou para Direito, em 1958. Alunos mais velhos perseguiam-no quando ia para os ensaios 3Carlos Fiolhais, professor de Física, fica espantado com a permissivi­dade dos alunos 4António Fontainhas Fernandes é presidente do Conselho de Reitores das Universida­des Portuguesa­s (CRUP) 5Teolinda Gersão diz que os alunos “calam e consentem”
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Quando chega à universida­de, o caloiro é considerad­o ‘animal’. Essa é a justificaç­ão para usar orelhas de burro e rastejar no chão

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