Correio da Manhã Weekend

O JAZZ QUANDO ACONTECE É PARA TODOS

A comemorar os 70 anos, o Hot Clube de Portugal vai dar música nas ruas de Lisboa

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Éportuguês o mais antigo clube de jazz da Europa, considerad­o por algumas revistas da especialid­ade um dos melhores do Mundo. o Hot Clube de Portugal, pois claro, que este ano completa 70 anos de existência, a querer afirmar-se como escola. Para já, no festival Lisboa na Rua, vai andar a mostrar-se ao final da tarde pelos jardins da cidade.

Os espetáculo­s, pelas diversas formações do Hot Clube, acontecem aos sábados, pelas 19h00, nos Jardins da Quinta de Santa Clara (25 de agosto), Arco do Cego (1 de setembro), Jardim do Torel (8 de setembro) e no Parque Recreativo dos Moinhos de Santana (15 de setembro).

Mas a história do Hot começa bem lá para trás. A ficha de sócio número 1 foi preenchida a 19 de março de 1948 por Luiz VillasBoas, figura fundamenta­l para a entrada do jazz em Portugal. A reprodução dessa ficha dá ainda hoje as boas vindas a quem entra no pequeno clube da praça da Alegria, em Lisboa (agora no número 48, depois de um incêndio ter destruído por completo a mítica casa mãe, que se situava no número 39). “Essa ficha tem muitos propósitos”, começa por referir Inês Homem Cunha, atual presidente do clube. “Um deles é lembrar que, com vontade, as coisas não só acontecem como perduram no tempo. O segundo é celebrar a paixão dos fundadores da casa”, acrescenta.

O Hot Clube nasceu pela mão de um grupo de amigos que gostavam de ouvir jazz e partilhar os poucos discos que, na altura, chegavam a Portugal. “Umdeles era o Luiz Villas-Boas, que depois criou um programa de rádio onde divulgava e, sobretudo, explicava essa música que tinha chegado à Europa com a Segunda Guerra Mundial. Ele acreditava muito nesse trabalho pedagógico”, recorda. Depois fundou um clube que nunca teve dinheiro para contrataçõ­es, mas mesmo assim fez história.

“O Luiz Villas-Boas trabalhava na companhia de aviação holandesa KLM e sabia sempre quando

Atualmente temos alunos dos 8 aos 80 anos

INÊS HOMEM CUNHA PRESIDENTE

os músicos faziam escala em Lisboa. Então ia ao aeroporto falar com eles, referia o clube, convidava-os para passarem cá uma noite e tocarem. As pessoas acabavam por sentir nele a paixão e a dedicação e vinham. Como Quincy Jones, por exemplo, cujos músicos chegaram ao aeroporto e foram diretos para o Hot Clube tocar”, recorda. Foi assim que o Hot Clube foi colecionan­do fãs e um elenco de estrelas. Quase todos os grandes passaram por ali.

No mesmo prédio, por cima do Hot Clube, havia um clube chamado Os Carlos (que recebia como sócios todos os Carlos que no nome encontrava­m razão para confratern­izar), uma tertúlia tauromáqui­ca e até uma casa de fa- dos, de Márcia Condessa. E é por isso que no espólio de Luiz VillasBoas existe, por exemplo, uma foto de Count Basie ao lado de Augusto Mayer (outro dos fundadores do Hot), com um cartaz de touradas por trás.

Outro momento especial aconteceu na Bélgica, em Comblain La Tour, “onde todos os anos se realizava um festival de jazz organizado por um americano, antigo combatente da Segunda Guerra Mundial”, conta Inês Homem Cunha. Foi aí que o Quarteto do Hot Club fez, nos anos 60, a sua primeira atuação internacio­nal. Subiu ao palco debaixo de apupos, por causa de Salazar, mas no final “foi aplaudido de pé”.

Todavia, a faceta do Hot Clube que ultimament­e tem vindo a ganhar maior expressão é a sua escola de música. Por lá passaram várias gerações de nomes conhecidos da música nacional, de Carolina Deslandes a Salvador Sobral, passando por Maria João. A consagrada cantora de ‘Chorinho Feliz’ ainda hoje recorda o dia que mudou a sua vida. “Um vizinho sugeriu-me que fosse fazer uma audição. Lá fui, mas só porque calhou. Nunca me tinha passado pela cabeça. Levei um único tema preparado: ‘Cantador’. Mas esqueci-me da partitura e, então, o Zé Eduardo, que era quem fazia as audições, ordenou: ‘Canta outra!’ Mas eu não tinha outra! Tive de improvisar. Não sei como, mas lá viram em mim qualquer coisa de

Aqui pode explorar-se a música livremente JOSÉ BLANCO ALUNO

especial... e entrei para aprender naquela cave apertadinh­a onde só cabia um aluno de cada vez”, conta.

Uma escola para todos

Hoje já não é assim. O clube noturno ficou na Praça da Alegria, mas a escola mudou-se de armas e bagagem para Alcântara, partilhand­o o edifício à beira Tejo com a Orquestra Metropolit­ana de Lisboa. E atrai cada vez mais gente: “A escola está atualmente com a capacidade máxima, ou seja, 300. Mas há cerca de dez anos só tínhamos 90. São fases...”, diz Inês Homem Cunha. A atual direção quer acabar com a imagem elitista que se tinha da escola. “Temos alunos dos 8 aos 80 anos nos cursos livres, aos sábados. Qualquer pessoa pode vir aqui aprender música. Essa abertura tem sido um dos nossos objetivos”.

Alunos como José Blanco, 26 anos, que toda a vida estudou música clássica (violoncelo), entrou e saiu do curso de Biologia, até descobrir que era jazz o que queria fazer. “Quero adaptar o violoncelo para a linguagem do jazz”, conta. Porquê? Pelo sentido de liberdade. “Na clássica aprende-se o que deve ser feito, a forma correta. Aqui pode-se explorá-la”, justifica.

Os gestos rápidos de Tomás Almeida conservam o mesmo entusiasmo que o levaram, na infância, a desbravar os segredos do velho piano da família guardado em casa da avó, no Brasil. Em Portugal, continuou a aprender no Hot Clube: “Simplesmen­te pelo prazer que dá.” O professor deste combo (assim se chamam os agrupament­os no jazz), André Santos, sabe que essa é a tecla a bater. “O que aqui tentamos passar é a emo- ção, a aventura, o desafio de fazer a música ali naquele momento único.”

Bernardo Moreira, 86 anos, professor do Hot e figura mítica do jazz em Portugal, reconhece que agora chegam alunos cada vez mais dedicados e a encarar a música de forma muito séria. “Vêm com sentido de carreira. Mas, por outro lado, também têm dificuldad­e em desfazer-se do interesse... em tocar sem ser para ganhar dinheiro”, lamenta. Tempos diferentes daqueles em que se tocava de “borla, s imples mente pelo gozo”. Pela diversão.

Já tivemos 90 alunos, agora temos 300. Mas gerir uma associação sem fins lucrativos é uma luta diária INÊS HOMEM CUNHA PRES. DIREÇÃO DO HOT CLUBE DE PORTUGAL

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Ao longo de 70 anos, o Hot Clube de Portugal recebeu alguns dos nomes mais consagrado­s do jazz e foi escola para muitos
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 ??  ?? Tomás Almeida ao piano, instrument­o que começou a tocar na casa da avó. O professor André Santos acompanha-o à guitarra
Tomás Almeida ao piano, instrument­o que começou a tocar na casa da avó. O professor André Santos acompanha-o à guitarra

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