Filme retrata a grandeza de Otelo, em primeira pessoa
Utilizando o rico acervo deixado pelo ator, documentário mostra como ele sublimou tragédias pessoais com a comédia
Documentário de Lucas H. Rossi dos Santos, Othelo, o Grande tem uma peculiaridade: o ator Grande Otelo falando sobre si mesmo e não pela voz de terceiros. Depois de passar por festivais, o filme já está em cartaz.
A montagem (de Willem Dias, ótima) foi possível graças à quantidade de documentos deixados por Grande Otelo (1915-1993), ao longo de sua trajetória. Não apenas os filmes de que participou, mas também as entrevistas que deu, algumas em TV, como no programa Roda Viva, da TV Cultura.
Nessas gravações, Otelo fala de sua vida dura, de seus sucessos e tropeços. Garoto mineiro de uma família pobre de Uberlândia (MG), o pequeno prodígio Sebastião Prata foi “doado” pela mãe, de papel passado, a uma companhia de espetáculos. Ao lado de Oscarito, foi a grande figura das chanchadas. Passou pelo Cinema Novo e pelo Cinema Marginal. Brilhou em papéis cômicos na TV. Fez músicas e cantou. Virou amigo de Orson Welles quando o diretor de Cidadão Kane esteve no Brasil para filmar seu documentário It’s All True. Que vida!
Otelo foi famoso, querido, amado, na verdade. Mas nunca deixou de sentir na pele o estigma da discriminação racial. Com papéis de igual importância, consta que ganhava um terço do que faturava seu parceiro branco, Oscarito. Num Roda Viva, um jornalista lhe pergunta: “Você acha que existe racismo no Brasil?”. Ele responde: “O simples fato de você fazer essa pergunta já mostra que existe”.
O filme revela toda a grandeza de Otelo, selecionando algumas de suas interpretações que se tornaram marcas registradas do cinema brasileiro: a agonia num registro de gás do personagem Passarinho em Amei um Bicheiro; o compositor Espírito da Luz cantando um samba num superlotado vagão de trem da Central do Brasil em Rio Zona Norte; o bêbado Cachaça, cambaleando e cantando, com voz esganiçada, no enterro de uma criança da favela em Assalto ao Trem Pagador. Como a Julieta paródica contracenando com o “Romeu” Oscarito na cena do balcão, em Carnaval do Fogo.
Essa sequência, hilária, mostra sua face dolorosa quando se sabe que Otelo havia, na véspera da filmagem, recebido a notícia de que sua mulher havia se suicidado, depois de matar um filho do casal. Ele mesmo conta a história. E como sublimou a dor em uma atuação cômica de antologia.
A vida entre a tragédia e a comédia é riquíssima. Boa parte dessa riqueza se estampa na tela, sem intermediários, devido à decisão de deixar Otelo descrevê-la, com o sentimento de verdade de quem a experimentou no calor do momento e não no confortável distanciamento crítico de um jornalista ou crítico de cinema ou de música.
Otelo dá pitacos que podem ser discutidos, como quando aponta as reticências do público em relação ao Cinema Novo. Ele abre uma exceção para um dos filmes em que trabalha – Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, adaptação cinematográfica da “rapsódia” de Mário de Andrade, em que faz o protagonista, papel dividido, ao longo do enredo, com Paulo José, o Macunaíma branco.
Relembra – e vemos as cenas na tela – sua incrível parceria com Werner Herzog, quando contracena com o alemão Klaus Kinski em Fitzcarraldo.
A essas virtudes do documentário se junta uma trilha sonora memorável tirada de Batucada Fantástica, de Luciano Perrone. O samba veste o filme e faz pulsar a brasilidade, sentimento maior desse imenso Otelo. •