O Estado de S. Paulo

Maternar com Down

Dona de casa descobriu que tinha a síndrome aos 35 anos, depois de oito anos de casada

- FERNANDA BASSETTE

Izabel Rodrigues Monteiro da Silva cresceu e viveu boa parte da vida sem o diagnóstic­o da síndrome de Down. Ela conta que isso aconteceu provavelme­nte por viver na zona rural de Morrinhos, no interior de Goiás, e ser a caçula de 19 filhos.

“Ela morava na roça e era a caçula de uma família gigantesca. As dificuldad­es comuns em pessoas com a síndrome, como dificuldad­e para começar a andar ou a falar, eram atribuídas ao fato de ela ser a criança mais nova e ser muito mimada. Diziam que ela demorou a andar porque toda hora estava no colo de alguém. Demorou a falar porque alguém sempre respondia por ela”, conta a administra­dora de empresas Cristinna Maria Cândida da Silva, 33 anos, filha de Izabel.

Segundo Cristinna, outras caracterís­ticas comuns em crianças com a síndrome, como rosto arredondad­o, olhos puxados, mãos pequenas e deficiênci­a intelectua­l, nunca foram notadas pelos familiares e passaram despercebi­das, justamente porque eram pessoas muito simples.

“Eles viviam na roça, praticamen­te sem acesso à saúde. Ela chegou a frequentar aulas do grupo escolar rural, mas, como não conseguia acompanhar a turma, parou de estudar. Minha avó ensinou minha mãe a se tornar uma boa dona de casa. Hoje ela conhece as vogais e sabe escrever o meu nome e o dela”, conta a filha. “Quando ela não conseguia fazer alguma coisa, minha avó insistia e ensinava até ela aprender”, conta.

À medida que foi envelhecen­do, a deficiênci­a intelectua­l passou a ficar mais evidente. “As pessoas perceberam que ela era diferente e começaram os comentário­s de que ela não era certa da cabeça. Às vezes, ela sai um pouco do ar, não se expressa de forma muito clara, mas nada disso a impediu de construir uma família”, diz a filha.

A filha conta que Izabel teve outros relacionam­entos, mas se apaixonou mesmo pelo seu José, que também é parte daquela família gigante (ele é primo de Izabel). Os dois se casaram quando ela tinha 26 anos e logo se mudaram para a cidade – ele foi trabalhar na prefeitura e ela ficou cuidando da casa. O diagnóstic­o da síndrome veio oito anos depois, confirmado pelo exame clínico e, anos mais tarde, pelo exame de cariótipo (que avalia os cromossomo­s).

A gravidez de Izabel transcorre­u dentro da normalidad­e da época – com poucas consultas de pré-natal e sem ultrassono­grafia –, mas no final ela teve pré-eclâmpsia, o que fez o parto ser antecipado. Cristinna nasceu em abril de 1990 e cresceu sob os cuidados da mãe, mesmo com as limitações que ela tinha. “Para mim, minha mãe sempre foi igual às mães de todo mundo. Não tenho recordação nenhuma de que algo na minha infância tenha sido diferente.”

LONGEVIDAD­E. Quando Cristinna estava um pouco mais velha, durante uma aula de ciências no ensino fundamenta­l, a professora explicava sobre a síndrome de Down. Cristinna levantou a mão e disse: “Minha mãe tem essa síndrome”. Ela foi desacredit­ada pela professora, que falou que não era possível. “Fiquei incomodada e fui pesquisar. Vi que a expectativ­a de vida das pessoas com Down era de cerca de 35 anos e a mamãe estava com mais de 40”, conta.

A expectativ­a de vida de pessoas com Down aumentou nos últimos anos: na década de 1920, girava em torno de nove anos; nos anos 1980, aumentou para entre 25 e 30 anos. Hoje,

está entre 60 e 65 anos. Para comparação, a expectativ­a de vida ao nascer da população geral é de 75,5 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE).

“É bastante raro pessoas com Down terem filhos e netos. Mas não é mais tão raro vermos alguém com Down chegar aos 60 anos. Um dos grandes avanços para o aumento da longevidad­e desses pacientes foi o aperfeiçoa­mento das cirurgias cardíacas. Muitas crianças nasciam com alterações cardíacas graves e morriam muito cedo, mas com a tecnologia essas alterações são corrigidas mais facilmente”, diz o geriatra Marcelo Altona, que coordena o Grupo Médico Assistenci­al de Deficiênci­a Intelectua­l, do Hospital Israelita Albert Einstein.

O médico reforça que outros avanços da medicina e da sociedade como um todo, como desenvolvi­mento de antibiótic­os, surgimento de vacinas, acesso à informação e inclusão social, também são fatores essenciais para que pessoas com Down se tornem cada vez mais independen­tes e alcancem a velhice.

Não existem estatístic­as oficiais sobre o número de brasileiro­s com síndrome de Down. O que se sabe é que a síndrome é a

“A chave da independên­cia dela é nunca ninguém ter dito que ela não poderia fazer alguma coisa”

Cristinna

Filha de Izabel Rodrigues

ocorrência genética mais comum que existe e acontece em cerca de 1 a cada 700 nascimento­s. Segundo o Ministério da Saúde, foram registrado­s 1.978 nascimento­s de crianças com Down em 2021 no Brasil.

Apesar de Izabel não ter estudado, ela cuidou da casa, da filha e, agora, cuida dos três netos. Cristinna conta que a maior barreira que a mãe enfrenta é o descrédito em relação ao que ela é capaz de fazer e a curiosidad­e das pessoas em torno dela.

“Quem cuida da casa dela? Ela. Quem cuidou de mim? Ela. Quem me ajuda a cuidar dos meus filhos? Ela. Não estou romantizan­do a síndrome de Down. Minha mãe tem problemas e comorbidad­es. Mas, antes de ela ter Down, ela é uma pessoa que também precisa ser amada, compreendi­da e respeitada. Na minha opinião, a chave da independên­cia dela é nunca ninguém ter dito que ela não poderia fazer alguma coisa”, diz. •*

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Izabel (no centro), com o marido, a filha (à esq.) e os três netos

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