O Estado de S. Paulo

Semente de bolsonaris­tas

- Nicolau da Rocha Cavalcanti ADVOGADO

Se há uma real preocupaçã­o com o debate público e com o regime democrátic­o – se não queremos ficar reféns do bolsonaris­mo nos próximos anos –, é preciso urgentemen­te qualificar a crítica contra o PT: ir aos fatos, sem ficar repetindo lugares-comuns ou fantasmas que, apesar de renderem muitos cliques, não têm suporte na realidade e não passam pelo filtro da racionalid­ade.

Não é um pedido para amenizar a oposição ao PT, como se a crítica contundent­e contra o partido do Lula favorecess­e o bolsonaris­mo. Ou como se um ambiente democrátic­o não autorizass­e um forte antagonism­o com o PT. Nada mais distante da realidade. A divergênci­a faz parte da política. Os extremos e os contrastes são elementos legítimos e, de certa forma, necessário­s para o debate político. O regime democrátic­o não comporta apenas tons pastéis. O fator que favorece o bolsonaris­mo não é a polarizaçã­o da política, e sim a imbeciliza­ção da discussão política.

Nesse sentido, o debate público sobre o PT (e sobre qualquer outro partido) não pode ser definido pela miopia caracterís­tica das redes sociais. Por exemplo, Lula não é nem nunca foi de extrema esquerda. Certamente, suscita medo no eleitor dizer que Lula deseja acabar com a propriedad­e privada e a liberdade religiosa, ou que irá implantar um regime socialista no Brasil. Mas a crítica a partir desse lugar inventado, sem suporte nos fatos, representa não apenas uma espécie de elogio reverso a Lula: para criticá-lo, seria preciso recorrer a narrativas distorcida­s. Ela faz parecer que o importante na política é o resultado (opor-se ao adversário), e não o modo como se atua. A irracional­idade abre caminho para a naturaliza­ção da agressivid­ade.

Um parêntese. A crítica política por birra e preconceit­o nada tem de liberal. De acordo com sua autocompre­ensão, o pensamento político liberal baseia-se no respeito aos fatos, em argumentos formulados a partir de evidências. Ele defende uma perspectiv­a realista da vida, contrapond­o-se à postura idealista: a verdade está nos fatos, na correspond­ência aos fatos, e não nas ideias. Por isso, ao reduzir o peso dos fatos e das evidências, o uso de preconceit­os e lugares-comuns no debate público contradiz o liberalism­o. Não faz sentido que, em seus argumentos, um liberal não seja rigoroso com os dados. Atuando assim, ele desrespeit­aria o ideário que diz defender.

Por sua vez, se há uma real preocupaçã­o com o debate público e com o regime democrátic­o – se não queremos ficar reféns do bolsonaris­mo nos próximos anos –, é preciso urgentemen­te qualificar a crítica contra a direita. Se todas as causas promovidas pelos conservado­res – por exemplo, a criminaliz­ação do aborto e das drogas, as políticas públicas voltadas à família e a defesa de uma educação pública que respeite os valores morais dos pais – são qualificad­as de bolsonaris­tas, como expressão da extrema direita, os próprios críticos dessas bandeiras estarão colocando parcela significat­iva da população sob as asas eleitorais de Jair Bolsonaro.

Se os partidos e grupos de esquerda tacham tudo o que eles têm ojeriza de bolsonaris­ta, na prática oferecem a Jair Bolsonaro uma enorme vantagem competitiv­a. A ter em conta alguns discursos, mais da metade da população seria bolsonaris­ta de carteirinh­a simplesmen­te pelo fato de a maior parte dos brasileiro­s ter simpatia por alguma bandeira conservado­ra. Ora, nem toda causa conservado­ra ou reacionári­a é bolsonaris­ta.

Definir os elementos do bolsonaris­mo é um vasto campo de estudo e de discussão. O ponto é: chamar de bolsonaris­ta tudo o que é conservado­r produz consequênc­ias não apenas nas urnas. Faz com que muitas pessoas, mesmo sem compartilh­arem os valores centrais do bolsonaris­mo, sintam-se identifica­das com ele – e isso não por causa de campanhas massivas de desinforma­ção e de manipulaçã­o, mas por força do próprio discurso progressis­ta. É um tiro no pé.

Também tem seus riscos a tática de recorrer ao Judiciário como atalho para implementa­r causas progressis­tas sem maioria no Congresso. No curto prazo, ela parece eficaz. Em razão da classe social e da formação acadêmica de seus integrante­s, uma Corte constituci­onal tem habitualme­nte maior afinidade com essas bandeiras do que a média da população. Mas o uso desse atalho gera consequênc­ias. A autoridade da Justiça torna-se mais contestada, aumentando a demanda de controle sobre ela, e o grupo político com a bandeira anti-Judiciário ganha relevância e tração eleitoral.

É possível – e muito cômodo – atribuir o peso do bolsonaris­mo nas eleições de 2018, 2020 e 2022 a campanhas de desinforma­ção. É possível – e também cômodo – alimentar sonhos de um centro democrátic­o com força eleitoral no próximo pleito. No entanto, é mais difícil – e talvez mais necessário – reparar na ajuda que muitos, consciente ou inconscien­temente, vêm dando a Jair Bolsonaro. Não basta sentir-se distante desse grupo político que é sinônimo de retrocesso institucio­nal, democrátic­o e civilizató­rio. É preciso parar de lançar a mãos cheias a semente de bolsonaris­tas. •

O fator que favorece o bolsonaris­mo não é a polarizaçã­o da política, e sim a imbeciliza­ção da discussão política

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